Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com a defensora pública coordenadora do Centro Estadual de Atendimento Multidisciplinar (CEAM), Patrícia Rodrigues Mendes 30/10/2023 - 10:18

Paulista natural de São José dos Campos, Patrícia Rodrigues Mendes se tornou defensora pública há exatos 10 anos, quando as(os) aprovadas(os) no I Concurso da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) para essa carreira tomaram posse de seus cargos no Salão Nobre do Palácio Iguaçu, na capital do estado.  

De família com uma condição econômica confortável - “eu não tinha tudo, mas tive acesso a tudo que eu precisava” -, filha de pais que se separaram quando ela entrava na adolescência e com um irmão e uma irmã mais novos, a defensora pública cresceu em um ambiente que debatia as desigualdades sociais que afetam o nosso país. E foi durante a graduação em Direito, cursada na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca (SP), que ela conheceu a instituição Defensoria Pública, a qual lhe daria a oportunidade de trabalhar com a população mais necessitada de acesso à Justiça.

Com dez anos de carreira e na função de coordenadora do Centro Estadual de Atendimento Multidisciplinar (CEAM) da DPE-PR, Patrícia Mendes é a entrevistada do mês do projeto Com a Palavra, a Defensoria. Aos 37 anos, em recuperação de um câncer de mama descoberto em novembro do ano passado - “descobri tomando banho, quando senti uma ‘coisa’ dura no seio” -, ela fala sobre os primeiros anos da DPE-PR, o atendimento ao público no CEAM e as dificuldades e recompensas da carreira de defensora pública. Confira!

 

Colagem com três fotos de Patrícia. Na primeira, ela esta sorrindo, com óculos e cabelo raspado. A segunda imagem, de 10 anos atrás, mostra Patrícia jovem, com cabelos compridos e encarcolados, sorrindo e usando a beca de defensora pública. A terceira imagem é um close nas mãos de Patrícia, apoiadas sobre a mesa, enquanto falava durante a entrevista.

 

O que levou você a cursar Direito e quais áreas te interessavam quando você era estudante? Você já conhecia o trabalho da Defensoria Pública? 

Eu entrei no Direito meio perdida, fiz a escolha muito pelas possibilidades de colocação [no mercado de trabalho] que essa faculdade me daria - e sempre pensando em concurso. Quando eu entrei na faculdade, a Defensoria não existia no estado de São Paulo. Eu fui conhecer a Defensoria mais do meio para o final da faculdade. E, nessa época, a DPE-SP já havia sido criada [a Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi criada em janeiro de 2006], mas não tinha sede em Franca. 

Em Franca tinha muitas faculdades de Direito, era concorridíssimo fazer estágio em órgãos públicos, mas o único que me interessava, na verdade, era o Ministério Público. Eu fiz a prova, super concorrida, e consegui ficar numa colocação em que eu conseguia fazer estágio em Franca, mesmo. Comecei trabalhando nas áreas de Família e Direito do Consumidor no MP, mas eu não gostava da intervenção como custos legis [como fiscal da lei], nem do ambiente institucional. Logo que eu terminei a faculdade, criaram no MP o estágio de pós-graduação. Eu pedi ‘prorrogação’, que era como eles chamavam [a continuidade do estágio de graduação na pós], e pedi para me transferirem para próximo da minha cidade. Acabei fazendo estágio em Jacareí [cidade vizinha de São José dos Campos] e trabalhei com a área de Infância e Juventude, com um promotor muito comprometido, que me ensinou muita coisa. Mas nessa época eu já tinha decidido pela Defensoria, tinha decidido na época da faculdade.

Eu estudava para concurso de manhã e de noite, e fazia estágio à tarde. E andava com uma mochila com o material de estudo e o edital do concurso da Defensoria de São Paulo, porque não existia Defensoria no Paraná, ainda. E todo dia eu olhava esse edital, riscava, estudava. Eu tinha um cronograma de estudo, então segunda eu estudava certos temas, terça outra coisa... Tinha época em que eu fazia cursinho e época em que eu parava. Eu me organizava também conforme eu conseguia absorver melhor o conteúdo. Eu sou uma pessoa matutina, eu funciono de manhã, então, de manhã estudava eu comigo mesma: ia para as salas do cursinho, nas baias - e o bom é que o celular não funcionava lá dentro - e passava a manhã ali, estudando. Só que era cansativo ficar estudando só assim, apenas eu e meu material, então eu fazia cursinho também, porque aí eu ouvia. E eu fazia isso de noite, que era o momento em que eu não dava conta de estudar sozinha, porque era muito cansativo. E foi assim durante mais ou menos uns três anos. 
 

E você chegou a fazer o concurso para a Defensoria de São Paulo? 

Cheguei, mas eu só passei na primeira fase depois que eu já estava aprovada aqui [no Paraná]. Aí eu fiz a segunda fase daquele jeito, não passei tão bem, recorri, mas acho que não recorri com muita vontade. Estava tão bem aqui no Paraná… 
 

Retomando o período da faculdade, tinha áreas do Direito de que você gostava mais?

Eu gostava muito de Penal e Processo Penal, fiz o meu TCC em Processo Penal. Acho que tinha essa coisa de ser uma área mais aguerrida, onde você vai brigar por quem não tem. Mas quando eu fui para o MP, eu me apeguei muito à Infância, adorava. E Infância eu não tive na época da faculdade, a grade mudou só depois [da formatura dela], quando passou a ser disciplina obrigatória.

E como você teve contato com a Defensoria? Você descobriu nas aulas, mesmo?

Não, foi com as notícias de tudo o que a Defensoria estava fazendo. Porque a Defensoria em São Paulo é muito forte. A gente tem ganhado espaço no Paraná, mas a Defensoria em São Paulo sempre teve um acesso à imprensa muito forte, de divulgar as coisas que a Defensoria faz. E eu queria atender a população hipossuficiente. 
 

E você se lembra de alguma notícia que tenha te marcado? Que tipo de notícias você via nessa época? 

Acho que muito da atuação da tutela coletiva. Eu lembro de uma situação na ocupação do Pinheirinho, que ficava na divisa de Jacareí com São José dos Campos, em que houve desocupação e a PM entrou com muita violência e, pelo que eu me lembro, teve atuação da Defensoria. Essas pessoas estiveram nesse local por muitos anos e do nada saiu uma liminar para reintegração de posse. 


Sobre a Defensoria do Paraná, você começou sua atuação lotada na sede de Umuarama, certo? Como foi o início da instituição nesta cidade? Como a população e outros atores do sistema de justiça receberam a Defensoria?

Eu escolhi Umuarama por influência do [servidor] Daniel [de Brito Aragão, atualmente supervisor do Departamento de Recursos Humanos], que elogiou a cidade e a sede. Eu não me lembro lembro quais eram as outras opções. 


Você não conhecia o Paraná? Não tem parentes aqui?

Não, nada. Eu escolhi Umuarama, mas, na época, tinha uma previsão legal de que o defensor ou defensora não poderia ir para a comarca sozinho(a). E, por conta disso, eu consegui negociar com a Administração Superior para que fosse para outro local, porque a outra defensora que iria para Umuarama comigo teve um problema de saúde e se afastou, então, na prática, eu estaria sozinha na comarca de Umuarama. E em Londrina teve uma pessoa que passou no concurso, escolheu a vaga e não assumiu. Então estava faltando uma pessoa em Londrina, por isso eu fui para lá. 

Cerca de dez meses depois, a outra defensora voltou, então eu fui para Umuarama, mas ficaria faltando um(a) defensor(a) em Londrina, que é uma cidade muito maior, e foi aberta a remoção para lá e essa defensora que estava lotada comigo em Umuarama pediu a remoção. Ela foi para Londrina e eu fiquei sozinha. Mas a essa altura eu já tinha bagagem, o que eu não queria era começar uma sede sozinha.

Em Londrina, a primeira faxina que foi feita no prédio foi a gente que pagou. A sede era enorme, mas tinha meses em que estava alugada, então estava toda suja. Nós não tínhamos serviço de segurança. A gente chegou a ir trabalhar na casa de um colega, que hoje é juiz em outro estado, porque a gente não tinha estrutura. Então, quando eu comecei em Umuarama, mesmo sem estagiário e sem servidor, pelo menos já tinha tinha vigilância e limpeza - era a dona Cida que fazia a limpeza e cafezinho pra gente todo dia, foi um pouco melhor. Isso foi mais ou menos em novembro de 2014, e em fevereiro de 2015 começaram a trabalhar na sede as servidoras: a psicóloga Jéssica [Paula da Silva Mendes] e a assessora jurídica Vanessa [Aita]. E depois foi chegando mais gente. 

Mas eu tive que começar tudo do zero e a teoria nunca é igual à prática. Então, claro, não foi fácil atuar, mesmo em Londrina, que tinha um volume monstro de trabalho na Infância Infracional, com audiência todos os dias. E até você pegar o ritmo vai um tempo. Em Umuarama, eu atuei na área de Família e na Infância Cível e Infracional. Mas a área da Infância, tanto a Cível quanto a Infracional, tem um volume de trabalho que você não consegue controlar, porque dificilmente chegam casos de pessoas que não são hipossuficientes. 

E como era, nesse começo, a recepção do público? Principalmente em relação a essa questão de orientação jurídica, pensando que a Defensoria também tem um papel de educação em direitos e pode fazer encaminhamentos, orientar o público sobre os seus direitos. Como era lá no início e como é agora? 

Eu acho que, no início, como a gente atuava em áreas mais “nichadas” - não sei se essa é a palavra certa -, que eram a Execução Penal, com pessoas que estão presas, e a Infância Infracional, eu acho que a gente acabava acessando muitas pessoas que estavam nessa condição: as pessoas presas e as famílias delas, e os adolescentes em conflito com a lei e suas famílias. E, muitas vezes, como existe uma seletividade do sistema, essas pessoas já conheciam os equipamentos, então, a gente até orientava, mas eu acho que tinha menos essa demanda de orientação jurídica do que tem hoje. Claro, às vezes as pessoas não têm clareza dos papéis do CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], do CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], do acolhimento [institucional, um dos serviços do Sistema Único de Assistência Social - SUAS], mas elas já estão minimamente referenciadas na rede [de proteção]. Acho que hoje as pessoas conhecem mais a Defensoria como guardiã de direitos, como o local em que as pessoas podem procurar informação. 


Você falou que o público que chega, em geral, é hipossuficiente e temos essa imagem de que a Defensoria atende pessoas que não podem pagar um(a) advogado(a), mas sabemos que o trabalho da instituição vai muito além, e as vulnerabilidades, muitas vezes, ultrapassam o fator econômico. Que reflexão você faz sobre essa questão das várias vulnerabilidades e como é o trabalho de capacitar as equipes para olhar para além do fator econômico?

Acho que superar a questão econômica é uma evolução de abordagem. É você compreender que vulnerável não é só quem não tem dinheiro. A vulnerabilidade tem outros aspectos. Mulheres em situação de violência, por exemplo, às vezes têm recursos financeiros, mas pelo fato de vivermos em uma sociedade machista, patriarcal, elas não conseguem se proteger e têm impactos muito mais gravosos - especialmente quando são mães - do que os homens quando se separam, por exemplo. 

Outro exemplo são as pessoas em situação de rua. Temos um caso de uma pessoa que tem uma renda superior ao nosso critério econômico [renda familiar de até 3 salários mínimos], mas que está toda comprometida com empréstimos. Ele acessa menos de dois salários mínimos, está em situação de rua, em acolhimento social. Então, como você não vai atender essa pessoa? Pelo critério socioeconômico eu teria que denegar [atendimento], mas minha abordagem pessoal, digamos assim, aqui na coordenação de atendimento, foi de mandar o caso para um estudo, uma avaliação do Serviço Social. Porque a gente tem um sistema bancário que permite que uma pessoa pegue tantos empréstimos a ponto de ficar sem condições de prover o seu sustento. Essas coisas precisam ser vistas no atendimento. 

Já em relação à equipe, a nossa tem formação para isso. O Serviço Social é todo voltado para essa percepção das vulnerabilidades. E a Psicologia também. Nós do Direito somos mais “literais”, digamos assim, então, se o critério socioeconômico [para o atendimento] é uma renda familiar de até três salários mínimos, vai ser esse o critério. 

Acho que, com dez anos de Defensoria, com o trabalho diário aqui, a gente consegue, para além da teoria, perceber essas vulnerabilidades e deferir o atendimento com base no caso concreto. Então, nesse aspecto, eu não acho que a equipe precisa de treinamento, eu acho que quem precisa é a gente [profissionais do Direito], inclusive para acionar a equipe. Temos que ter uma troca constante com as equipes, para que a gente não cometa injustiças. Claro, é um atendimento de massa, alguma coisa vai passar, mas é importante a gente ter esse olhar mais sensibilizado para esses grupos hipervulneráveis.

É um pouco o olhar que o Direito também precisa ter, de não seguir a letra da lei…

Com certeza. Porque se a gente da Defensoria não tiver esse olhar, ninguém mais vai ter. A gente tem que estudar e trabalhar para ter criatividade. Esse trabalho maravilhoso de Guarapuava, em que uma assistente social criou a tese da remição pelo trabalho doméstico [a servidora Nilva Maria Rufatto Sell], é um exemplo. Claro que o Direito também tem ideias inovadoras, mas a gente precisa desse outro olhar. Porque o grosso do nosso trabalho, muitas vezes, é um pouco mecânico, e quando você tem um caso diferente, você precisa realmente ter outros elementos, outras ferramentas, para pensar diferente. A gente precisa se educar para entender o que é jurídico e o que pode ser auxiliado por outras áreas do conhecimento, com um olhar diferenciado.
 

Como é ser coordenadora da maior sede da Defensoria? Ao mesmo tempo, como foi para você, lá trás, quando chegou à Defensoria, ter contato com esse trabalho multidisciplinar? Na faculdade de Direito essa interação deve ser pouco explorada... Como era esse trabalho multidisciplinar lá no começo, como é agora e como é estar na coordenação de um centro - agora estadual - de atendimento multidisciplinar?

Eu tive a sorte de fazer faculdade em um campus que tinha Serviço Social, e eu participei de grupos de estudos na época da faculdade, então tive a possibilidade de ter contato com esses estudantes. Na verdade, o campus em que eu estudei tinha Serviço Social, História, Relações Internacionais e Direito, era bem plural, com perfis muito diferentes. Isso, talvez, tenha me sensibilizado para entender que o Direito não vai dar conta de tudo. E é uma construção. Eu acho que eu ser casada com uma psicóloga da Defensoria [a servidora Jéssica Paula da Silva Mendes] me permite uma troca muito grande, muito antes de ocupar esse cargo de coordenadora do CEAM. Se a gente é muito hermético no nosso conhecimento, a gente não evolui.

Agora mesmo eu estava assinando um projeto para fazer uma formação com a nossa equipe de trabalho e com a equipe do setor Cível e me perguntaram se eu iria participar. E claro que vou, eu quero ir lá, quero ouvir, eu preciso me reciclar, também. Eu acho que o mais importante é pensar que é sempre uma troca, que eu não sei de tudo e que eu não estou aqui para coordenar nada que não seja dialogado. Eu posso não concordar com elas, elas podem não concordar comigo, mas a gente vai, no mínimo, conversar para chegar a um lugar mais adequado. 

E a coordenação estadual é mais recente, é uma lei do ano passado [Lei Complementar nº 248, de 1º de agosto de 2022]. E confesso que está caminhando bem devagar por conta do meu estado de saúde, mas conseguimos fazer o Encontro de Equipes Técnicas e eu tive um diálogo muito bom com a comissão organizadora, as meninas foram excelentes, foram elas e a Escola da Defensoria (EDEPAR) que fizeram a coisa acontecer. Agora estamos trabalhando no relatório final do evento, e dele vieram várias sugestões para regulamentação do CEAM. Minha ideia é fazer uma comissão com as equipes para que a gente possa fazer uma regulamentação que faça sentido para as equipes, que possa dar um respaldo de atuação, porque as atuações são muito discrepantes no estado todo. Então, a ideia é que a gente possa, de alguma forma, uniformizar isso, respeitando as peculiaridades locais.
 

Como foi para você começar na linha de frente da Defensoria, recebendo as demandas da população pela primeira vez, e hoje estar à frente do setor, coordenando uma equipe que, dez anos depois, passa por experiências parecidas com a sua?

Olha, é muito gostoso. Eu, em algum momento, tive até o interesse de ser professora. Mas com o tempo, poder supervisionar estagiários, por exemplo, me satisfez. Todo mundo precisa saber a teoria, mas eu acho muito mais legal a prática, porque é onde você vê que o Direito não dá conta de tudo. A lei não dá conta de tudo, e precisamos ser criativo. É onde nós vemos que, muitas vezes, o acordo ao qual a pessoa chega é muito melhor do que aquilo que a lei propõe. Claro que isso é uma caminhada, no início é difícil. Mas hoje eu já sento para fazer o atendimento com o assistido e consigo ajudar mais facilmente a encontrar a resposta de que ele precisa. A riqueza do atendimento é essa: muitas vezes, as pessoas contam suas histórias e nós precisamos buscar nessas narrativas onde conseguimos atuar para poder ajudar sob o viés do Direito. As demandas vão se somando, então, por exemplo, primeiro nós identificamos que se trata de uma demanda da área Cível, somada à área da Família, mas também tem um inventário… E aí é necessário ver o que vem primeiro. Esse raciocínio não é algo que se desenvolve lendo livro. É na prática que a gente cresce. Temos estagiárias e estagiários que passaram pela experiência de fazer o primeiro atendimento e que, hoje, fazem petições. Mesmo no caso de quem não retorna como defensora ou defensor, é inegável o aprendizado que essa experiência proporciona.


Em uma década atendendo usuários e usuárias, qual foi o caso que mais te marcou? Conte uma experiência que te revelou o porquê de uma instituição como a Defensoria Pública existir.

Teve uma situação aqui em Curitiba que eu fiquei arrasada por não ter feito a pergunta que, hoje, para mim, era óbvia. Era uma família com três filhos, e o processo começou por causa de uma das crianças. A família morava em um terreno que era da sogra da mãe, onde o ex-marido deixava material reciclável - o que, para pessoas que estão na classe média ou alta, era só lixo, então era um lugar “insalubre”. Os conselheiros tutelares nos informaram que acreditavam que estaria acontecendo exploração sexual das meninas porque elas ganhavam presentes do vizinho, como shampoo e perfume. Então, era um caso de medida protetiva, em que havia sido constatada uma situação de risco para as crianças. Eu fiz o atendimento do caso e, durante a audiência com a mãe das crianças, não lembro exatamente em que contexto, ela falou: “A gente não tem água em casa”... Como assim, não tem água em casa? Era por causa de um vazamento que tinha ocorrido há dois anos e eles não tinham condição de pagar para resolver o problema. 

“Mas como vocês fazem para tomar banho?”, perguntei. “O vizinho deixa a gente tomar banho lá”. Esse era o motivo para que elas ganhassem os produtos, a família não tinha condição nem de comprar comida, imagina shampoo. Não tinha exploração sexual nenhuma. E eu fiquei pensando: como é que eu não perguntei se ela tinha água em casa? E depois de dois anos, ela também ficou tão acostumada com essa situação que não mencionou isso durante o atendimento. 

Casos como esse, da área da Infância e Juventude, foram os que mais me marcaram, pois são casos muito delicados. Ter trabalhado com essas demandas me fez começar a fazer perguntas cujas respostas, antes, pareciam óbvias para mim. Mas não são.
 

Além de defensora, você é uma mulher negra casada com outra mulher. Como essas suas experiências pessoais moldaram a forma como você trabalha com as pessoas que buscam a Defensoria Pública?

Para mim, são questões tão intrínsecas que é até difícil separar. Nós conseguimos projetar um olhar diferenciado no momento do atendimento. Já vi muitas vezes colocações e posturas discriminatórias dentro do sistema de Justiça, e presenciar essas situações nos faz enfrentar embates o tempo inteiro contra isso. O racismo e a homofobia estão nas pequenas coisas, e como é estrutural, é difícil você identificar. Diversas situações já me fizeram questionar se eu realmente estava vendo aquilo que parecia ser. Com certeza, ter essas características nos faz criar uma “casca grossa” para poder lidar com a vida e com o trabalho na Defensoria. 

Nós nunca podemos saber o quanto raça e gênero, de fato, influenciam nas decisões de quem, por exemplo, julga casos atendidos pela Defensoria. Mas com essa casca que nós criamos, vemos coisas que talvez as outras pessoas não vejam.

E a população me ver nesse lugar de defensora pública também é importante. Em alguma medida, o público se identifica, vê que também pode estar aqui. Eu não consigo entender todas as dores dos assistidos e das assistidas, mas uma parte delas, sim.

Observando o atendimento inicial de toda a Defensoria, quais são os principais avanços nestes 10 anos e quais temas e ações você considera prioritárias e urgentes para os próximos anos para que a Defensoria cresça e se consolide ainda mais?

Acredito que a centralização do primeiro atendimento, triagens e inicias da área de Família em Curitiba foi um avanço, uma melhoria significativa. Não tem como falar do atendimento à população se você não falar também do trabalho do defensor. Como eu tive a experiência de trabalhar em uma sede descentralizada, eu posso dizer que estávamos bastante sobrecarregados. E quando há muito trabalho para fazer, você não consegue dar a atenção adequada para a demanda do assistido, que é o mais relevante. Outro avanço foi o estabelecimento de uma triagem mais simplificada, algo que dá mais agilidade ao trabalho da instituição. 

A prioridade maior é a expansão, mas não só de defensores e defensoras, isso deve valer também para as equipes técnicas, pois não se faz o atendimento completo de muitas demandas e áreas sem as mais diversas assessorias que trabalham na Defensoria. Por isso, a ampliação não só do quadro de defensores, mas de toda a instituição, é fundamental para que possamos crescer com uma boa fundação. Apenas assim poderemos oferecer à população uma assistência jurídica gratuita e, de fato, integral. Expandir significa também fortalecer o atendimento onde já estamos presentes, mas onde ainda não oferecemos atendimento em todas as áreas. É um trabalho de formiga. Avançamos muito nos últimos dois anos, estamos com concurso para servidores aberto, temos trabalhado no concurso para defensores… 

Especificamente no primeiro atendimento, conseguimos profissionalizar muito o nosso trabalho. Fortalecemos a atividade-meio (setores administrativos), com equipes mais estruturadas para servir e dar condições ao serviço na ponta, em função do assistido. 

Para encerrarmos, conte para nós o que você lê, assiste e ouve no seu tempo livre.

Estou gostando de ler os livros da Elena Ferrante [pseudônimo de uma escritora italiana], curtindo muito a tetralogia “Amiga Genial” feita por ela. Também adoro ouvir podcasts. Quando eu trabalhava na sede descentralizada do Boqueirão [bairro de Curitiba], eu ouvia aqueles longos, de bate-papo, no caminho até o trabalho. Hoje em dia, ouço alguns mais curtinhos, como as histórias do “Não Inviabilize”.

Também sou muito de TV. Recentemente, assisti a um documentário incrível que mostrava várias iniciativas sobre saúde mental, com a Oprah Winfrey e o Príncipe Harry, chamada “O Meu Lado Invisível”. São diversas iniciativas de saúde mental ao redor do mundo, mostrando pessoas que enfrentam doenças mentais, mas que têm uma vida dentro da normalidade. É uma produção que me educou muito. Recomendo muito.

Claro, gosto bastante de séries, estou com muitas esperando na fila. Lamento que “Manhãs de Setembro”, que tem a Liniker [atriz e cantora trans] no papel principal, tenha tido só duas temporadas.

Mas, em geral, acompanho muitos reality shows e produções de entretenimento do gênero. Coisas mais leves.
 

O fato de você assistir essas séries, digamos, que não têm uma seriedade tão grande, é também para contrapor o trabalho diário na Defensoria?

Com certeza. Quando estou muito cansada e não dou conta de pensar muito, eu também assisto séries repetidas, que eu já vi várias vezes, como Friends. Já sei todas as piadas, todas as frases, mas assisto, fico relaxada e me faz bem. Sou 100% esse tipo de pessoa.