Estudo inédito de servidora da Defensoria Pública do Paraná defende redução do tempo de cumprimento de pena por trabalho doméstico 24/04/2023 - 14:22

Uma pesquisa inédita realizada pela servidora da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) Nilva Maria Rufatto Sell defende a possibilidade de que a Defensoria Pública solicite, nos processos de execução de pena em que atua, a redução do tempo de cumprimento da pena por trabalho doméstico, por meio do direito intitulado 'remição da pena'. Na prática, o estudo defende que pessoas sentenciadas que cumprem pena em regime semiaberto ou em prisão domiciliar, com o uso de tornozeleira eletrônica, e que sejam responsáveis por limpar a casa, preparar alimentos e cuidar de crianças, pessoas idosas e familiares doentes, por exemplo, têm direito à remição da pena tal como sentenciados e sentenciadas que obtém a remição da pena por trabalho e/ou estudo.

A proposta deve beneficiar em especial mulheres que hoje cumprem pena em um dos dois regimes citados, isso porque elas, na grande maioria, são as principais responsáveis pela realização do trabalho doméstico e do cuidado, ao mesmo tempo em que enfrentam inúmeras dificuldades para conseguir um trabalho remunerado (justamente o que poderia lhes garantir o direito de remir a pena), seja pela discriminação histórica enfrentada no mercado de trabalho, seja porque o trabalho doméstico toma grande parte de seu tempo e lhes impede de obter um emprego ou ocupação fora da residência.

A servidora, que é assistente social da sede da DPE-PR em Guarapuava, explica que a equipe de Serviço Social sempre buscou atuar para que pessoas atendidas pela área de Execução Penal não tivessem de cumprir todo o tempo estipulado originalmente pela sentença, ao considerar o contexto social em que vivem, de privação de direitos antes do período de enceraceramento e dificuldade de reinserção no mercado de trabalho durante e após o cumprimento da pena. Nesse sentido, algo que chamou a atenção da equipe da DPE-PR foram as dificuldades enfrentadas por mulheres apenadas justamente por serem mulheres.

A experiência da servidora e de outras(os) profissionais da DPE-PR com mulheres apenadas em regime aberto ou prisão domiciliar mostra que, em muitas situações, elas são as únicas responsáveis por cuidar de outros membros da família - papel historicamente associado pela sociedade às mulheres.

"Isso prejudica excessivamente o cumprimento da pena e a possibilidade de autonomia econômica dessas mulheres, e até a própria questão da remição da pena, porque elas permanecem no ambiente doméstico fazendo esses trabalhos, diferentemente do público masculino, que pode ter um acesso maior a um trabalho remunerado e retorno aos estudos para conseguir a redução da pena", argumenta a servidora e pesquisadora.

"Vivemos em um sistema de Justiça que, em sua história, foi pensado por homens e feito para homens, assim como o próprio sistema penitenciário, que não leva em consideração as questões das mulheres", explica Rufatto. O estudo aponta para o crescimento de 600% da população carcerária feminina no Brasil entre 2000 e 2016, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias sobre Mulheres, de 2019, do Ministério da Justiça.

Além de buscar soluções que beneficiassem as mulheres assistidas pela Defensoria, o estudo também buscou destacar e questionar a falta de reconhecimento, pela Justiça, da importância do trabalho doméstico não remunerado, que é exercido majoritariamente por corpos femininos e ainda não possui o devido reconhecimento social e político enquanto uma tarefa essencial para o funcionamento da sociedade. A equipe técnica discutiu, então, a construção de um pedido de remição de pena que abordasse a questão com uma perspectiva de gênero, embora o pedido também possa beneficiar homens que eventualmente exerçam tal função em suas residências. A partir de conversa com a defensora pública Thatiane Barbieri Chapetti, optou-se por encaminhar um pedido à Escola da Defensoria Pública do Paraná (EDEPAR) para que fosse discutida a viabilidade jurídica da tese.

Imagem com quatro fotos da assistente social Nilva em atuação na Sede da Defensoria Pública do Paraná em Guarapuava.
Assistente social da Defensoria Pública do Paraná em Guarapuava, Nilva Maria Rufatto Sell, em atuação na região.

 

Julgamento com perspectiva de gênero

A partir da pesquisa e proposta da servidora, a EDEPAR emitiu um parecer jurídico que poderá fundamentar pedidos feitos no futuro por defensores(as) públicos(as) que vislumbrem a possibilidade de mulheres apenadas assistidas pela Defensoria solicitarem a remição da pena por trabalho doméstico. O parecer foi elaborado pelo Diretor da Diretoria de Pesquisa da EDEPAR, Giovanni Diniz Machado da Silva.

Durante a elaboração do pedido de remição de pena, não foram encontradas outras teses que utilizassem o trabalho doméstico como fundamento para a remição da pena. A equipe da Defensoria tentou, sem sucesso, encontrar esse debate na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), e essa constatação apenas aumentou a relevância e a importância de a Defensoria Pública inaugurar o debate e provocar a discussão pelo Poder Judiciário. Essa análise, inclusive, conecta-se diretamente com a necessidade de se promover julgamentos com perspectiva de gênero. Em março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a criação de uma resolução para a implementação obrigatória do "Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero" no âmbito dos tribunais brasileiros. A diretriz obriga o Poder Judiciário a considerar a dimensão de gênero em decisões e na aplicação das leis - um aprimoramento na reparação das desigualdades entre homens e mulheres. Saiba mais sobre esse assunto aqui.

A Diretoria de Pesquisa da DPE-PR entendeu que a relevância jurídica da análise inédita feita pela assistente social se somava à necessidade de garantir maior visibilidade ao trabalho doméstico.

"Sem os cuidados à casa, às crianças, aos idosos, a sociedade não funciona da mesma maneira, e isso tem um peso de gênero que é velado. Todo mundo sabe, todo mundo vê, mas não é debatido", comenta Silva, que atestou a viabilidade jurídica e assinou o parecer.

A promoção da igualdade de gênero, inclusive, é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que fazem parte da chamada Agenda 2030, promovida pela Organização das Nações Unidas. Em fevereiro de 2022, a DPE-PR formalizou um Memorando de Entendimento junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para efetivar o cumprimento da Agenda no âmbito da instituição, e a promoção da igualdade de gênero é um dos objetivos que a DPE-PR se comprometeu a efetivar, logo, a proposta de remição de pena por meio do trabalho doméstico realizado por mulheres em privação de liberdade é um passo importante em direção a essa igualdade. 

A expectativa do Diretor da Diretoria de Pesquisa da EDEPAR, agora, é que o trabalho da equipe técnica da instituição em parceria com a Escola reforce a atuação de defensores(as) públicos(as) do Paraná da área de Execução Penal, e que os tribunais do estado reconheçam a importância de se considerar os argumentos trazidos nas decisões. "Tudo isso vai significar mais justiça, mais igualdade e, principalmente, um salto civilizatório a respeito do tema", concluiu Silva.