Resolução do CNJ que determina julgamentos com perspectiva de gênero impacta positivamente a atuação da DPE-PR 17/03/2023 - 17:22

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituição responsável por aprimorar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, aprovou, na última terça-feira (14/03), a criação de uma resolução para a implementação obrigatória do "Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero" no âmbito dos tribunais brasileiros. Antes, o documento era apenas uma recomendação aos tribunais; agora, trata-se de uma diretriz obrigatória para o Poder Judiciário, que deverá considerar a dimensão de gênero em decisões e na aplicação das leis nas mais diferentes áreas do Direito. O debate que levou à mudança recebeu contribuições da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) durante anos, e representa um avanço na proteção dos direitos das mulheres, pois pode ajudar na reparação das desigualdades de gênero presentes nas diferentes esferas da Justiça.

O protocolo foi lançado em outubro de 2021, por um grupo de trabalho do CNJ dedicado ao combate à violência institucional contra as mulheres. As autoras destacam que questões de gênero e raça ainda limitam o acesso à Justiça de uma parcela da população, que fica privada de um direito fundamental.

Na DPE-PR, a perspectiva de gênero é diariamente trabalhada e incentivada por meio do trabalho desempenhado pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM). Nas Defensorias Públicas como um todo, as iniciativas são coordenadas pela Comissão Especial para a Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres do Conselho Nacional de Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE), que estimula esse debate e busca implementar ferramentas para a inclusão da perspectiva de gênero no sistema de justiça há quase uma década. Em 2014, a instituição foi uma das responsáveis pela criação do "Protocolo Mínimo de Padronização do Acolhimento e Atendimento da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Famíliar". Para conferir, clique aqui.

˜Esse trabalho buscou incentivar a criação e padronizar a estrutura e forma de atuação dos Núcleos de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) e Defensorias Públicas Especializadas no Brasil, como forma justamente de se garantir às usuárias dos serviços das Defensorias um atendimento humanizado e sensível às desigualdades de gênero, respeitando-se a autonomia de todas as mulheres a partir de uma escuta ativa e respeitosa", explica a defensora pública coordenadora do NUDEM do Paraná, Mariana Martins Nunes. A decisão do CNJ, segundo a defensora pública, vem se somar ao movimento de efetivação de um sistema de Justiça mais atento e sensível às múltiplas violações de direitos que as mulheres enfrentam durante os processos judiciais.

O atendimento com perspectiva de gênero para as mulheres vítimas de violência foi regulamentado pela DPE-PR em junho de 2021 pelo Conselho Superior da instituição. A deliberação define que as equipes da instituição devem oferecer assistência psicológica, atendimento em espaço reservado e, preferencialmente, feito por servidoras e defensoras mulheres, dentre outras providências sensíveis às questões de genero. 

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Revitimização na Justiça

Segundo Melina Girardi Fachin, professora do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutora em Direito Constitucional, a perspectiva de gênero ainda é, muitas vezes, negligenciada pelos tribunais no Brasil, inclusive no Paraná. Embora a recomendação já exista há cerca de um ano e meio, segundo ela, ela é pouco seguida país afora. 

"No Paraná, por exemplo, embora existam iniciativas importantes para promover a perspectiva de gênero no judiciário, com a atuação firme da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Paraná (CEVID-TJPR), ainda há muito a ser feito para garantir que as questões de gênero sejam adequadamente consideradas em todas as decisões judiciais", comenta Fachin. 

A professora explica que sem políticas afirmativas voltadas a ampliar os direitos das mulheres, o próprio sistema judiciário pode reproduzir violações de gênero e levar à revitimização. Isso ocorre, por exemplo, por meio de abordagens inconvenientes às mulheres por parte do juízo durante o julgamento. ˜Em um sistema judicial que já é sexista e patriarcal, a judicialização pode levar a decisões que reforçam estereótipos de gênero e perpetuam a discriminação", reforça a professora.

Perspectiva de gênero na prática

Os estigmas enfrentados por mulheres nos tribunais vão muito além dos processos que envolvem casos de violência. Dentro das diversas áreas em que a Defensoria atua, a mudança no trabalho de juízes e juízas em prol das questões de gênero pode fortalecer as reivindicações das mulheres que utilizam o serviço jurídico gratuito da instituição. 

Segundo a defensora pública Camille Vieira da Costa, que atua no Setor Cível e Fazenda Pública de Curitiba, a implementação do protocolo muda a forma como o Poder Judiciário deve analisar, dentre outros contextos, situações de usucapião familiar, em que o homem abandona o lar; obtenção de curatela, muitas vezes buscada por mulheres; pensão alimentícia e guarda, que, em geral, são solicitadas pelas mães; e pedidos de vaga em creche, ao entender que as mães são fortemente impactadas por essa questão.

"Quando não há vaga em creche, não é só a criança que é muito lesada. Sem uma política de creche, as mulheres são muito afetadas. Existem muitas mães solo, mães chefes de família, que ficam com um trabalho mais precarizado e não conseguem se manter no mercado de trabalho por conta disso. Levar essa perspectiva para dentro do Judiciário muda a forma de se olhar para as demandas", exemplifica a defensora. 

Outra frente de atuação da Defensoria que espera conquistar avanços a partir da decisão do CNJ é o cumprimento da Resolução 369 do CNJ. O texto estabelece "procedimentos e diretrizes para a substituição da privação de liberdade de gestantes, mães e responsáveis pelos cuidados de crianças e pessoas com deficiência", define a resolução. A defensora Mariana Nunes também comenta que o documento propõe um olhar atento às violências de gênero subjacentes às alegações de alienação parental nos processos em trâmite nas Varas de Família.

As novas formas de enxergar as interseccionalidades de gênero, etnia e classe na implementação das leis passa também pelo treinamento de profissionais que atuam na defesa e na promoção dos direitos da população mais vulnerável. A defensora Camille Vieira ressalta que, para a DPE-PR, a preparação das equipes de assistência jurídica da instituição à nova realidade, a partir da implementação do protocolo, propõe novas maneiras de se atender às necessidades das usuárias. 

"Eu, como defensora, posso começar a pensar como eu posso fazer uma incidência no Poder Judiciário para exigir uma política pública de cuidado, que organize a sociedade de outra forma para dar suporte a essa mulher. Além de carregar a perspectiva de gênero nos casos em que já atuamos, podemos criar novas possibilidades de atuação, muitas que nem conseguimos imaginar ainda", comemora ela.