“Não tem outra ação mais urgente do que o fechamento dos manicômios judiciários” – Entrevista com a Psicóloga Nayanne Costa Freire 18/05/2023 - 11:34
Por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de acordo com a Resolução CNJ n. 487/2023, até maio de 2024 todos os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) do país devem ser fechados. Também conhecidos como “manicômios judiciários”, esses espaços abrigam pessoas com transtornos mentais que foram consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, ou seja, aquelas pessoas que não podem ser responsabilizadas por seus atos e chegam a esses espaços para cumprirem uma medida de segurança.
O fim dos “manicômios judiciários” está previsto há mais de 20 anos na Lei Antimanicomial (Lei n. 10.216/2001) e a data de hoje - 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial - busca discutir esse tema e cobrar das autoridades o cumprimento da lei, que já foi responsável pela implantação de uma rede de saúde mental e atenção psicossocial para o atendimento dessas pessoas em liberdade.
Na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) o “Projeto Desinstitucionalização Responsável: Apoio técnico ao atendimento jurídico realizado em processos de sujeitos submetidos à condição de internos asilares no Complexo Médico Penal" debate esse tema há quase três anos, ao atender pessoas conhecidas como “asilares”, que, mesmo após terem cumprido a medida de segurança, não têm para onde ir e permanecem no Complexo Médico Penal (CMP) do Paraná, localizado em Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, aguardando acolhimento em local adequado ou reinserção familiar. O CMP é o único do Estado a abrigar pessoas em cumprimento de medida de segurança.
Recentemente, o município de Pinhais realizou uma ação no CMP para realizar a inscrição das pessoas asilares no Cadastro Único (CadÚnico), que permitirá o acesso delas a programas e benefícios do governo federal, como o Benefício de Prestaçaõ Continuada. Essa ação é solicitada pelo Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP) há cerca de dois anos, e demonstra a importância do projeto, que articulou a ação junto a várias instituições e órgãos: Secretaria de Assistência Social de Pinhais, Defensoria Pública da União, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Conselho da Comunidade e Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Tribunal de Justiça do Paraná.
Conversamos com uma das integrantes do Projeto para saber mais sobre a luta antimanicomial e como a Defensoria Pública se insere nesse debate. Nesta semana, a psicóloga Nayanne Costa Freire está em viagem, visitando programas substitutivos à lógica dos Hospitais de Custódia nos estados de Goiás e Minas Gerais em companhia da assistente social Tânia Moreira, que também integra o Projeto. A psicóloga respondeu a três perguntas sobre o tema que você confere a partir de agora.
1) Muitas pessoas demonstram desconhecimento quanto ao que deseja a luta antimanicomial, e também fazem relações estigmatizantes entre transtornos mentais e violência, muitas vezes movidas pelo medo e pela falta de acesso à informação. Como devemos abordar esse tema a fim de engajar as pessoas na luta antimanicomial?
Acredito que é muito fácil para a sociedade simplesmente não enxergar essas pessoas. Enquanto enclausuramos essas pessoas, eu, você e todo mundo vamos seguindo as nossas vidas, nem sabemos que essas pessoas estão lá. Então, fica muito confortável para a sociedade como um todo, seguir vivendo e não se incomodar.
A pessoa que está cumprindo uma medida de segurança cometeu um crime sem ter noção do que estava fazendo, estava fora de si naquele momento. Mas quando as enviamos para manicômios judiciários, o que temos a oferecer a ela? Temos a oferecer um lugar úmido, frio, que amontoa pessoas, enfim, um lugar que não vai fazer ninguém melhor. Pelo contrário, esse lugar vai adoecer ainda mais as pessoas que ali estão. E existe alternativa a esse modelo, que é a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece e que já é de conhecimento das famílias em seus territórios, composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Serviços Residenciais Terapêuticos, e outros. Essa rede também precisa dar uma retaguarda para a família que vai receber essa pessoa. A rede de saúde precisa estar ali, presente, precisa ter profissionais capacitados para dar conta de um surto, para dar conta no momento em que essa família precisar recorrer a ele. Precisa estar ali, inclusive, antes do surto, criando vínculo com todos os integrantes daquela família.
Também existem internamentos de curta duração que podem ser acionados quando há uma crise, até a estabilização psiquiátrica dessa pessoa, mas depois disso essa pessoa tem que voltar para o seu território, para continuar o tratamento junto da sociedade. No caso de uma pessoa com transtorno mental, quando ela é direcionada para um hospital geral por conta de um surto, permanece ali até sua estabilização por um curto período – de até 45 dias – e retorna para o seu território, é muito mais fácil o seu vínculo com seus familiares estar preservado. Ela não fica com esse estigma da pessoa que teve que ser internada e afastada da sociedade, porque isso gera essa sensação de perigo, de risco, quando, na verdade, ela deve ser entendida como alguém que precisa de tratamento e de acompanhamento. Porque o afastamento de longo prazo, na verdade, é um problema que o Estado cria para ele próprio resolver anos mais tarde. Ele afasta a pessoa de sua família, ela por vezes perde o vínculo familiar e não tem mais para onde voltar. Essa situação, somada ao transtorno mental que, muitas vezes, impossibilita uma vida completamente independente, faz com que seja necessário a pessoa esperar a inserção em serviço residencial terapêutico, algo que o Estado vai ter que resolver.
A luta antimanicomial quer essas pessoas livres em seus territórios, lidando com as suas vidas, como tem que ser. Não queremos que apenas algumas pessoas tenham direito a uma vida em que possam ter as suas escolhas respeitadas, enquanto outras pessoas não têm esse direito.
2) Sabemos que o fim dos manicômios é apenas uma das ações dessa luta, que envolve muitas outras iniciativas e políticas. Quais ações vocês consideram as mais urgentes? E a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) conforme está estabelecida na Política Nacional de Saúde Mental é suficiente para atender essas pessoas que ainda se encontram nos "manicômios judiciários"?
Não tem outra ação mais urgente do que o fechamento dos manicômios judiciários. Porque enquanto essa alternativa existir, ela será usada. Não podemos negar que vivemos em uma sociedade conservadora, onde diversos atores sociais operam nessa lógica conservadora de resolver a questão com internamento, isolamento e segregação. Então, em primeiro lugar devemos fechar essa porta de entrada.
Não adianta querermos trabalhar com a saída das pessoas, como temos feito, por exemplo, no Projeto [Desinstitucionalização Responsável]. Sabíamos, desde o início, quando começamos a atuar nesse projeto, que lidar apenas com a porta de saída nunca seria suficiente, porque as pessoas nunca vão deixar de entrar. E, mais uma vez, a partir do momento em que as pessoas entram, o Estado cria um problema. Sim, algumas pessoas vão sair porque não perderam o vínculo, mas outras vão perder esse vínculo, porque estão sendo afastadas das suas famílias.
Muitas famílias estão cansadas, exaustas e vão dar graças por esse ‘respiro’, por esse tempo em que a pessoa com alguma questão de saúde mental estiver afastada e, depois, não vão querer mais contato com essa pessoa. E o Estado fica com essa questão para resolver. Então não adianta, não dá para ser flexível nessa hora. A ação urgente que tem que ser tomada: é o fechamento. Aliás, essa ação deveria ter sido tomada há muito tempo. Não é deixando essas pessoas no manicômio que vamos resolver [o problema], porque isso é muito cômodo, nós – enquanto sociedade - vamos deixando para depois.
Quando não houver esse modelo, serão construídas outras alternativas. No caso do programa que conhecemos em Goiás (o PAILI – Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator), não foi exatamente o fechamento de um manicômio, porque não havia esse espaço, mas existiam pessoas com transtornos mentais em penitenciárias comuns e, de repente, elas tiveram que sair e, então, esse modelo foi aplicado, que nada mais é do que atender essas pessoas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ou seja, no território delas, em liberdade. O programa conta com uma equipe da Secretaria de Estado da Saúde responsável por articular a RAPS e o Sistema de Justiça e por monitorar cada uma das pessoas que cumprem medida de segurança no Estado de Goiás.
A RAPS é suficiente para atender, tem toda uma construção de dispositivos ali, mas é evidente que na hora em que todas essas pessoas voltarem aos seus municípios, teremos que lidar com falhas da RAPS, porque existe o serviço, mas a quantidade de vagas não é suficiente, então teremos que adequar. Há municípios pequenos que não contam com CAPS, que não contam com serviço de psicologia e psiquiatria, então vamos precisar encontrar soluções. Em Goiás, aprendemos que, com o fechamento do Complexo Médico Penal do Paraná, surgirão novos problemas a serem resolvidos, mas serão bons problemas no sentido de que é muito melhor lidar com problemas de pessoas livres do que com os problemas de pessoas aprisionadas.
E precisamos lembrar que o Brasil é enorme, é diverso. Temos Estados que já não possuem Hospitais de Custódia, mas temos outros que possuem mais de um. Ao falarmos em fechamento desses espaços, estamos nos referindo a não existir mais pessoas cumprindo medida de segurança na modalidade de internação, mas no CMP hoje temos outras pessoas que fazem tratamentos clínicos ou estão em fase pré ou pós-operatória e que fazem parte do sistema prisional, cumprem pena comum. Esse atendimento médico vai precisar continuar a ser prestado e o local para isso deverá ser determinado.
3) Qual é o papel da Defensoria Pública na luta antimanicomial? E o que vocês têm observado nos atendimentos realizados pelo projeto em relação ao atual modelo de "manicômio judiciário"?
São vários os papéis. Podemos fazer o que já temos feito, por exemplo, que é compor grupos interinstitucionais que constroem políticas públicas, que articulam essas mudanças de maior impacto, podemos atuar judicialmente no caso individual ou de forma coletiva demarcando a defesa intransigente dos direitos humanos e denunciando situações que estão em desacordo, e podemos, também, trabalhar com educação em direitos, mostrando qual é a ideia dessa luta, engajando as pessoas.
Dentro do projeto e através de um grupo de trabalho interinstitucional, conseguimos construir e publicar um protocolo de atendimento para garantir que as pessoas que chegam para cumprir medida de segurança já tenham um projeto terapêutico singular (PTS) elaborado, para que desde o início do cumprimento da medida já haja um planejamento de sua saída. São passos dados no sentido de tentar garantir que essas pessoas tenham um tratamento digno. Estamos sempre ali, de olho, tentando garantir e efetivar direitos.
Esse modelo de manicômio judiciário é fadado ao fracasso e adoece as pessoas. E é muito triste trabalhar com ele, nós acompanhamos alguns casos em que não só não conseguimos fazer com que a pessoa volte a ter uma vida digna como nos deparamos com a morte dela dentro desse sistema. É muito desesperador. Esse modelo, além de tudo que já foi dito, é preciso ressaltar: é racista e deixa evidente a desigualdade social presente em nossa sociedade.
A luta antimanicomial está pelo direito, pelo acesso à moradia digna e adequada, pelo acesso à saúde, pela liberdade. A Defensoria Pública é antirracista e defende cada um desses direitos.
Mas temos também uma boa perspectiva agora com a Resolução 487 do CNJ, que determina o fechamento dos hospitais de custódia no Brasil. Também foi criado um grupo interinstitucional de trabalho para implementação da Política Antimanicomial do Poder Judiciário específica do Paraná agora, no dia 15 de maio [última segunda-feira]. Ele tem uma duração programada de 30 dias e a ideia é que, desse grupo, saia uma proposta de termo de cooperação para que o Paraná execute realmente um modelo substitutivo ao Hospital de Custódia. Tudo isso está sendo discutido, uma proposta que culmine com o fechamento do Complexo Médico Penal para que possamos resolver essa questão. Porque a loucura sempre esteve presente na sociedade, sempre convivemos com ela, mas em determinado momento essa loucura passa a ser segregada. Então, esse é o momento de nos reunirmos e vermos o que vai vir dessas articulações.
Aproveito também a oportunidade para convidar todas as pessoas interessadas nesse tema a participarem do “Seminário Internacional de Saúde Mental: Possibilidades para a efetivação da Política Antimanicomial na interface com o Poder Judiciário” que acontecerá nos dias 15 e 16 de junho, em Curitiba, com inscrições abertas no site do CNJ. [Clique aqui para saber mais]
Saiba mais sobre o Projeto Desinstitucionalização Responsável
O Projeto surgiu em junho de 2020 e busca,por meio de atuação extrajudicial, possibilitar a liberdade para essas pessoas, seja através da reconstituição de laços familiares já rompidos, seja através do encaminhamento para instituições adequadas custeadas pelo Estado, para que elas não permaneçam ainda mais tempo na unidade e tenham, enfim, respeitados os seus direitos à liberdade. Até o momento, o projeto já atendeu 70 pessoas, das quais 47 já foram encaminhadas para as respectivas famílias ou para instituições, e 23 permanecem no CMP aguardando acolhimento familiar ou institucional.
Atualmente, integram o projeto a defensora pública Andreza Lima de Menezes, a psicóloga Nayanne Costa Freire, as assistentes sociais Tania Moreira e Nilva Maria Ruffato Sell e as estagiárias Mariana Melli (Psicologia) e Jéssica Kochi (Serviço Social). Saiba mais sobre o projeto aqui.