Defensoria conquista registro tardio para idosa em sofrimento mental que cumpriu medida de segurança no CMP 12/09/2022 - 11:43

Acredita-se que Dora da Silva* tenha vivido por mais de 60 anos sem que o Estado brasileiro soubesse de sua existência. Ela só passou a existir para esse Estado quando em 2018 cometeu uma conduta considerada crime e foi para o Complexo Médico Penal (CMP) cumprir uma medida de segurança de internação**. É nesse lugar que a sua história se cruza com a Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR) e Dora se torna, finalmente, uma cidadã brasileira.

A senhora Dora da Silva foi atendida pelo Projeto “Desinstitucionalização Responsável” em setembro de 2020, quando seu alvará de soltura já havia sido expedido há mais de cinco meses. Ela cumpriu medida de segurança no CMP em razão da prática de um “crime” no qual ela foi considerada inimputável em razão de ter diagnóstico de esquizofrenia paranoide (saiba mais sobre o Projeto na matéria relacionada, ao final da reportagem).

Sozinha, sem família ou amigos, e aparentando ter cerca de 60 anos, ninguém sabe ao certo a sua história, já que por causa da doença ela mesma não é capaz de contar com precisão episódios de sua vida. Em várias passagens de seu processo judicial ela é chamada de “Dora DE TAL”. Em entrevista à equipe técnica do projeto, ela relatou que não sabia dizer a própria idade e não era alfabetizada. À época em que foi apreendida, ela vivia em situação de rua e, embora dissesse que seus documentos pessoais haviam sido roubados, a Defensoria não encontrou no Paraná nenhum registro de sua documentação. Durante o processo, o Instituto de Identificação do Paraná chegou a fazer uma pesquisa das impressões digitais dela em seu banco de dados e não encontrou qualquer registro. 

Apesar de todo seu silêncio em relação à identificação, Dora recebeu um sobrenome no laudo da primeira perícia psiquiátrica, sem que o documento explicasse como essa informação foi obtida. Ela passou a ser chamada assim, com nome e sobrenome, em diversos momentos do processo e, durante a execução da medida de segurança no CMP, tinha apenas o Número de Cadastro Individual (NCI) como número de identificação, um registro feito pela Polícia Civil quando uma pessoa é presa e não possui documento de identificação. Apenas quando a DPE-PR passou a assisti-la por meio do Projeto Desinstitucionalização Responsável é que sua certidão de nascimento foi providenciada através de uma ação de registro de nascimento tardio.

“É obrigação do gestor prisional, no momento do ingresso da pessoa [na unidade penal], providenciar a documentação dela, justamente para garantir a cidadania dessa pessoa. Porém, nesse caso, não foi só o Poder Executivo que falhou, mas o Judiciário e o Ministério Público também. No curso do processo criminal que ela respondeu, eles viram que ela não tinha o registro de nascimento e se contentaram com o registro temporário disponibilizado pela Polícia Civil. Somente quando ela se tornou uma pessoa em condição asilar, e a Defensoria Pública correu atrás de alternativas de vida para ela fora do ambiente prisional, foi que a gente percebeu que ela não tinha nenhum registro” avalia a defensora pública coordenadora do Núcleo da Política Criminal e Execução Penal (NUPEP), Andreza Lima de Menezes. “Ela só foi vista no momento em que foi selecionada pelo sistema penal. Foi aí que o Estado ofereceu uma atenção mínima para ela. Esse caso é bem emblemático para a gente pensar de que maneira o Estado cuida das pessoas que estão privadas de liberdade, em especial das pessoas com sofrimento mental”, complementa a defensora.

O pedido foi feito em abril de 2021 e só agora, em agosto de 2022, a certidão foi emitida. A demora se deve à busca que precisou ser realizada em cartórios e arquivos dos Institutos de Identificação de diversos estados por onde Dora relatou ter passado. A busca foi feita em Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande Do Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul, mas sem sucesso. Assim, a Justiça foi convencida de que, muito provavelmente, Dora nunca foi registrada e, agora, ela passa a existir oficialmente para o Estado brasileiro.

“O acesso à certidão de nascimento lhe garante dignidade. Por meio do registro de nascimento tardio ela poderá acessar os demais documentos pessoais e, com eles, ser inscrita no Cadastro Único (Cadúnico) dos Programas Sociais, pré-requisito para o acesso ao Programa Auxílio Brasil e Benefício de Prestação Continuada (BPC), além dos demais serviços, projetos e programas das Políticas Públicas. A certidão de nascimento e os demais documentos pessoais proporcionam dignidade inclusive em caso de falecimento, uma vez que são documentos necessários para a emissão da Certidão de Óbito”, explica a assistente social da DPE-PR que acompanhou o caso, Tânia Moreira.

 

Na semana passada, a assistente social Tânia Moreira visitou a instituição de longa permanência onde Dora mora para entregar, em mãos, a sua certidão de nascimento. Quer saber como foi esse momento? Acesse o Instagram da DPE-PR e confira o vídeo. Clique aqui.

 

Em Londrina, mulher sem documentos não podia se vacinar

Maria Helena Ferreira também ficou quase sete décadas sem registro. Só foi descoberta pelo Estado quando, em 2021, não pôde se vacinar contra a Covid-19 porque não tinha qualquer documento. Após a atuação da DPE-PR em Londrina, Maria tomou a vacina e deu entrada no pedido de registro tardio. Aos 70 anos, ela finalmente vai ter os seus direitos como cidadã brasileira respeitados. 

“Segundo ela, seu pai trabalhava derrubando matas, de modo que a família passava grande parte do tempo nas matas, sem ter acesso à cidade. Através de ofícios e de articulação com a Secretaria de Saúde do município, conseguimos fazer ela tomar as doses da vacina e entramos com o processo para ela ter um registro civil e assim ter todos os seus direitos garantidos”, conta a psicóloga que atua na sede da DPE-PR de Londrina, Alysha Carolyna Rocha de Oliveira.  

“A ausência da certidão de nascimento inviabiliza o exercício de inúmeros direitos. Proporcionar a esses cidadãos que possam obter, ainda que tardiamente, sua certidão de nascimento impacta significativamente na vida dessas pessoas, visto que muitas não têm acesso a direitos sociais básicos, como saúde, educação e previdência social”, explica a defensora pública Renata Tsukada, que atuou no caso de Maria Helena.

 

Saiba como pedir o Registro Tardio

A primeira certidão de nascimento de toda pessoa nascida no Brasil deve ser emitida gratuitamente e, segundo o artigo 50 da Lei 6.015/1973, o nascimento deve ser registrado dentro de 15 dias, podendo o prazo ser ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede de um cartório. Em caso de mãe solo, o prazo para ela registrar sua filha ou filho é de 45 dias, para que seja respeitado o período puerperal, que é o tempo que vai do parto até 45 dias após o nascimento. Quem perde esses prazos deve passar por um procedimento mais complexo, e, às vezes, é necessário o preenchimento de requerimento e testemunhas, além do pagamento das taxas do cartório.  

O chamado “registro tardio” pode ser realizado pela própria pessoa no Cartório de Registro Civil (registro tardio de pessoas vivas), mediante requerimento por escrito assinado por duas testemunhas, de acordo com o Provimento 28/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mas, caso o procedimento no cartório não seja possível, ainda é possível fazer o registro tardio pela via judicial. 

Antes de ingressar com a ação judicial, a Defensoria Pública realiza consultas junto aos Cartórios de Registro Civil da cidade na qual o(a) usuário(a) teria nascido, em busca de seu registro de nascimento. Caso não seja encontrado nenhum registro em seu nome, são expedidos ofícios a órgãos e instituições solicitando informações sobre a existência de algum cadastro, o que indicaria que, em algum momento, essa pessoa foi registrada. Se não for encontrada nenhuma informação sobre a existência de cadastro ou documento em nome da pessoa, presume-se que ela realmente nunca tenha sido registrada, e só então é proposta a ação judicial de registro tardio. 

Para mais informações sobre como realizar o registro tardio, entre em contato com a sede da Defensoria Pública mais próxima de você. Acesse aqui e veja nossos locais de atuação.

 

* Nome fictício para preservar a identidade da assistida.

** De acordo com a legislação penal, pessoas inimputáveis não cometem crime e não cumprem pena, mas sim uma medida de segurança, que pode ser de internação ou ambulatorial. Quando consideradas inimputáveis, elas são absolvidas impropriamente, um termo para dizer, em linguagem jurídica, que a pessoa foi absolvida, mas terá de cumprir uma medida de segurança pelo tempo equivalente ao tempo que ela deveria cumprir caso tivesse sido condenada e a ela tivesse sido imposta uma pena.