Conheça o trabalho da Defensoria do Paraná para garantir condições dignas de saúde nas unidades prisionais paranaenses 13/07/2023 - 14:36

Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que 62% das mortes ocorridas dentro das cadeias analisadas na pesquisa nacional “Letalidade prisional: uma questão de justiça e saúde pública”, realizada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), foram causadas por insuficiência cardíaca, infecção generalizada, pneumonia e tuberculose. Além disso, em média, uma pessoa vive apenas 548 dias após deixar o encarceramento, menos de dois anos. Os números mostram que as condições de saúde das unidades prisionais e sua superlotação, que levaram o Supremo Tribunal Federal a afirmar que o sistema prisional brasileiro vive um "estado de coisas inconstitucional", podem oferecer um risco ainda maior à vida que os próprios episódios de violência - representantes de 28% das mortes no cárcere. A atuação da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) em estabelecimentos penais demonstra que as condições indignas de saúde atravessam o sistema de Justiça, atingem também trabalhadores do sistema prisional e ganham peso com a fragilidade mental da população privada de liberdade. 

Recentemente, uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP) da DPE-PR garantiu a interdição da carceragem da 30.ª Delegacia Regional de Polícia em Arapongas, a realocação das pessoas detidas e a proibição de que novas pessoas adentrassem a unidade antes de reformas que garantam a dignidade humana dos encarcerados. Dentre as condições que provocaram estado de calamidade nas dependências internas está a proliferação de doenças, consequência da insalubridade e da presença expressiva de insetos e roedores entre os residentes - além da superlotação de cerca de 400%. O estado foi condenado a pagar indenizações por danos morais aos encarcerados.

De acordo com a defensora pública que coordena o NUPEP, Andreza Lima de Menezes, o sistema prisional paranaense carece de ações coordenadas entre estado e município para oferecer um atendimento adequado à saúde da população carcerária. Segundo ela, o Paraná aderiu, já em 2014, à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Instituída pelo Ministério da Saúde, a iniciativa tem o objetivo de ampliar os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) às pessoas encarceradas. No entanto, mesmo após quase dez anos, a PNAISP, na prática, nunca foi efetivada no estado.

Na avaliação da defensora, o reflexo disso são poucos municípios paranaenses com equipes de saúde credenciadas para atuar regularmente nas unidades prisionais."Nós pedimos que o Paraná faça como outros estados fazem, isto é, exerça atividades de prevenção, saúde coletiva, vacinação regular, tratamentos do SUS", afirma Menezes. A responsabilidade sobre a situação sanitária do cárcere deve ser compartilhada entre órgãos municipais e estaduais, complementa ela, o que não ocorre hoje.

A falta de assistência médica se soma aos ambientes propícios para a disseminação de doenças nos estabelecimentos penitenciários, que muitas vezes apresentam uma sobrecarga de pessoas, como é o caso de Arapongas. Atualmente, os estabelecimentos prisionais do Paraná possuem 29.044 vagas, mas comportam 37.266 pessoas, segundo o Relatório Mensal do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP), organizado pelo CNJ. 

Como explica a defensora pública Monia Serafim, coordenadora da Sede de Ponta Grossa, a Cadeia Pública Hildebrando de Souza, localizada no município, traz outro exemplo sobre como a superlotação é um fator que impulsiona a circulação de doenças, justamente por impossibilitar o distanciamento físicos dos indivíduos privados de liberdade.

"Especialmente nessa unidade, os problemas de saúde mais comuns variam de acordo com o período do ano. No verão, por exemplo, surgem mais casos de doenças de pele contagiosas, em razão do calor, em especial na cadeia pública, que tem condições mais insalubres. Já no inverno, aumentam os casos de doenças respiratórias em razão do frio", comenta ela. A Hildebrando de Souza comporta 248 pessoas a mais do que a estrutura suporta adequadamente, o maior déficit de vagas registrado dentre as cidades mais populosas dos Campos Gerais, aponta o mesmo levantamento do CNIEP.

No Brasil, a Resolução n.º 14 de 1994 do Conselho Nacional de Política Criminal estabelece regras mínimas para o tratamento de pessoas privadas de liberdade. O documento descreve os requisitos mínimos para o local que irá custodiar a pessoa privada de liberdade, como "cama individual provida de roupas, mantidas e mudadas correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto" e "exigências de higiene, de acordo com o clima, particularmente no que se refere à superfície mínima, volume de ar, calefação e ventilação".

Mortes no cárcere

O estudo encomendado pelo CNJ ainda revela que 62% das mortes ocorridas dentro das cadeias analisadas foram causadas por insuficiência cardíaca, infecção generalizada, pneumonia e tuberculose. O número supera o volume de mortes provocadas, por exemplo, por armas de fogo, objetos cortantes ou enforcamento. 

A área de Execução Penal da Defensoria Pública, ao identificar casos de risco à vida por conta de doenças, pode solicitar que seja substituída a privação de liberdade para que o indivíduo possa receber o tratamento adequado, por exemplo, em prisão domiciliar. Os pedidos feitos pela DPE-PR buscam justamente evitar que as condições do cárcere levem as pessoas à morte.

No entanto, como conta a assessora jurídica Sabrina Monique Leal Mendes, nem sempre a Defensoria consegue evitar que ocorram fatalidades. Ela relembra um caso no Complexo Médico Penal (CMP) em Pinhais em que a Justiça negou um pedido de prisão domiciliar a um homem paraplégico, de 27 anos, que morreu em novembro de 2022. O indivíduo tinha a saúde muito debilitada, com base em prontuário médico do CMP, e pesava aproximadamente 38 kg. 

"Ele era preso provisório, ou seja, não tinha condenação transitada em julgado, e estava preso preventivamente há quase um ano. Mas mesmo com toda a documentação instruindo o pedido, e os relatórios da interdição do CMP demonstrando que a unidade não tinha condições de tratá-lo, mantiveram sua prisão e ele morreu sem nem ser julgado", comenta a assessora.

Risco a todo o sistema prisional

Conforme a pesquisa do Insper e da FGV, a incidência da tuberculose chega a ser 30 vezes maior em unidades prisionais do que entre a população em liberdade. Essa alta disseminação da enfermidade não atinge apenas os indivíduos encarcerados, mas também profissionais que atuam diretamente com eles. Foi o caso da assessora jurídica Maria Emilia Glustak, que atua na Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba (RMC). 

"Muitos acreditam que ela é uma doença erradicada, quando na verdade ela ainda é muito comum dentro do sistema carcerário. Sabemos de assistidos que faleceram por causa da tuberculose, é uma doença que ainda provoca muitas perdas às populações mais vulneráveis", comenta ela. A assessora jurídica teve os primeiros sintomas da doença no início de 2022, mas foi diagnosticada apenas em outubro do mesmo ano. O tratamento, à base de antibióticos, dura cerca de seis meses.

Para Glustak, a experiência pessoal com a tuberculose permitiu a ela compreender que a doença, como outras que circulam no cárcere, poderia ser mais facilmente resolvida pela própria condição de reclusão. "Essas pessoas estão sob vigia do estado 24 horas por dia, então, ter certeza de que o enfermo está tomando um remédio, todos os dias, no mesmo horário, não deveria ser um problema", analisa.

Os profissionais, além de estarem expostos às doenças que comumente circulam nas unidades prisionais, também podem trazer enfermidades para dentro desses espaços. A assessora jurídica ressalta que bactérias, vírus e outros vetores trazidos de fora das prisões se espalham com facilidade entre pessoas que têm uma alimentação pouco nutritiva, residem em ambientes sem ventilação e falta de luz solar.

"Essa questão ficou muito clara durante a pandemia de Covid-19, quando a doença se disseminou com muita facilidade no cárcere, justamente pelas condições das unidades", afirma Glustak. Se por um lado o contato com a população em liberdade aumentava as chances de contaminação por coronavírus, a pesquisa divulgada pelo CNJ observa que a suspensão de visitas e atendimentos médicos durante o isolamento social acentuou a desnutrição e o número de mortes em estabelecimentos penais. É comum que familiares e outros visitantes tragam alimentos de fora para os indivíduos privados.

Saúde mental x saúde física

A atuação da Defensoria Pública também evidencia o impacto das condições do cárcere sobre a saúde mental. "Os usuários com quem conversamos começaram a nos pedir que enviássemos psicólogos para atendê-los. Mas os profissionais são poucos, e precisam se revezar entre as unidades. É uma demanda que vem crescendo, e ninguém consegue dar conta", comenta Francine Faneze Borsato Amorese, defensora pública da sede de Londrina.

Ela define os problemas de saúde mental no cárcere como "um ciclo que nunca acaba", pois muitos indivíduos com transtornos psicológicos deixam de se alimentar, cometem faltas por mau comportamento e, com isso, são submetidos a um tempo maior de reclusão, bem como chegam a provocarem lesões no próprio corpo. A saúde mental, já abalada, fica ainda mais debilitada e intensifica as demais consequências. Amorese exemplifica essa situação com o de um apenado que atualmente se encontra na Casa de Custódia de Londrina (CCL).

"Eu ajudei ele a pedido da unidade, pois apresentava muitas dificuldades de relacionamento. Ele progrediu do cumprimento de pena em regime semiaberto, mas logo regrediu por conta de um novo crime. Desesperado, começou a se cortar e enviar para algumas pessoas pedaços da própria pele", comenta ela. Além da defensora pública, uma psicóloga e um assessor de estabelecimento penal passaram a atender o homem. No entanto, apesar dos quadros de melhora, ele volta a se desesperar.

Casos como esse demonstram, conforme Amorese, a falta de estrutura médica também do ponto de vista do atendimento a pessoas com questões de saúde mental. A sede da DPE-PR de Londrina segue em tratativas com universidades da região para que estudantes de psicologia passem a atender pessoas encarceradas, como forma de minimizar a falta de profissionais.

Indenizações do estado

A Defensoria Pública obteve, em abril, decisão favorável a um pedido feito pelo NUPEP que obriga o estado do Paraná a indenizar individualmente pessoas que estiveram presas em carceragens policiais de Curitiba. A sentença apontou para danos morais causados às pessoas presas no 3° e no 12° Distritos de Polícia da capital paranaense, uma vez que permaneceram presas em condições degradantes e indignas, com risco à sua integridade física e psicológica. Confira mais sobre o caso aqui.