Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com Karollyne Nascimento, ouvidora-geral da DPE-PR 29/01/2024 - 11:00

“Nós sempre quisemos ocupar o nosso lugar de direito, não esse lugar de vítima em que todo mundo coloca a gente. Tudo o que a nossa população sempre quis, sempre almejou, foi o direito de ser ouvida, a oportunidade de mostrar que temos competência, podemos ajudar a melhorar o trabalho e podemos também estar na linha de frente”. 

No mês da Visibilidade Trans, o projeto “Com a Palavra, a Defensoria” entrevista aquela que é a primeira mulher trans a estar no cargo de ouvidora de uma Defensoria Pública no Brasil: Karollyne Nascimento. Embora, como nos disse – e mostra o seu currículo –, ela não é só uma mulher trans: já foi conselheira de Saúde em Curitiba e dos Direitos das Mulheres no estado, membra consultora da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero e da Comissão de Estudos de Violência de Gênero (CEVIGE) da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Paraná (OAB-PR), e membra do Comitê LGBT+ do Conselho Permanente de Direitos Humanos do Paraná (COPED), entre outros papéis em movimentos sociais. Em suas palavras, “um caminhão de funções”.

Mas foi principalmente como coordenadora do Transgrupo Marcela Prado (2018-2021) que ela ficou conhecida na militância pelos direitos dessa população. Não só por ser uma mulher trans, mas pela sua vocação de ajudar todas as pessoas – comprovada pelo carinho com que é recebida em todos os mutirões da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) de que participa – e quando, ao final da entrevista, no lugar de falar um pouco mais de si mesma, acaba por revelar seus planos para ajudar ainda mais. “Eu sou uma pessoa com quem você pode contar para o que for, para o que der e vier. Eu não vou medir esforços para te ajudar”, define-se, e demonstra com sua história de vida, que você confere a seguir.

No Dia da Visibilidade Trans (29/01), Karol, como é chamada, compartilha qual é seu desejo para as pessoas trans: aproximá-las dos serviços da Defensoria e levá-las de volta “para a luz”, onde podem ocupar seu lugar de direito, como sempre almejaram.

Imagem que mostra a ouvidora Karollyne Nascimento em três momentos: em sua mesa, na sala da Ouvidoria da DPE-PR, consultando o computador; um close de suas mãos durante a entrevista e em mais um momento da entrevista, em que olha para a entrevistadora com um semblante feliz. Em todas ela veste um blazer branco sobre uma blusa listrada de preto e branco. Seu cabelo está preso para trás e ela usa um par de brincos de bola laranja.

Conte um pouco sobre sua infância e adolescência. Como foi esse começo de vida? Você já se identificava como uma menina trans?

Eu sou nascida aqui em Curitiba, nasci no Prado Velho, bem na frente de onde hoje é a PUC [Pontifícia Universidade Católica do Paraná]. Sou de uma família de nove irmãos, cinco meninos e quatro meninas - contando comigo nessa questão identitária de gênero. Com seis anos eu saio do Prado Velho e vou morar no então Mossunguê - que hoje é conhecido como Ecoville. Minha infância foi uma infância muito tranquila, eu não diria que foi difícil, mas com algumas limitações. A gente nunca passou fome, sempre tivemos o básico para sobreviver, mas a gente não tinha luxo. Eu não tenho pai desde criança, a minha mãe era arrimo de família. Ela trabalhava na empresa de ônibus Sulamericana como zeladora e foi assim que ela sustentou e manteve todos nós. 

Sempre fui para a escola, estudei, e desde criança já me entendo como uma pessoa do gênero feminino. Mas foi aos 15 anos que eu realmente me identifiquei. A minha formação diante dessa existência, dessa identidade, foi muito em cima da travestilidade, porque o entendimento da transsexualidade como uma identidade de gênero é muito recente. E eu enfrentei alguns percalços na família, tive o apoio da minha mãe, principalmente, nesse momento, mas dois irmãos foram mais resistentes em me aceitarem - e nem digo “aceitar” porque eu não gosto dessa palavra, mas tiveram um pouco mais de dificuldade de entender essa minha questão identitária. 

Com 19 para 20 anos eu casei, e era uma relação lida como um casal do mesmo sexo, porém, o nosso olhar era de um casal hétero normal, porque eu sempre me vi como uma mulher na relação e ele como o marido. Foi uma relação que durou 19 anos e nesse tempo eu acabei não tendo muito convívio com as minhas pares. Vivia a minha relação, trabalhava, como qualquer outra pessoa, qualquer outro casal, na nossa sociedade. E também com todos os percalços e dificuldades de um relacionamento.

Entre 2010 e 2011 eu comecei a me separar e aí começa minha jornada de militância mais efetiva. Eu me aproximei do Transgrupo Marcela Prado e foi quando eu comecei a ter mais notoriedade no meio e aparecer um pouco mais. E eu nunca tive o objetivo de chegar aonde cheguei. A minha ideia foi sempre ajudar, fazer o bem. Quando eu cheguei na coordenação do Transgrupo, em 2018, não era a minha pretensão. Eu sempre preferi ficar na coxia, nos bastidores, ajudando no pesado, na mão de obra. Estar à frente para mim sempre foi um problema, porque por mais que eu não pareça, eu tenho um problema em lidar com essa coisa de ser o foco das atenções, de ser uma referência.

 

Em que área você trabalhava?

Eu já fui auxiliar de escritório e trabalhei em uma sorveteria no Shopping Curitiba. Quando casei, fui trabalhar com eventos, trabalhei 14 anos nessa área, e quando eu me separei, eu precisava dar uma guinada na minha vida. Resolvi mudar toda a minha relação de contatos, de amigos, e fui fazer outras coisas, experienciar viver de uma outra forma. Eu continuei trabalhando mais um tempo até que decidi parar com a questão de eventos e fui me aventurar a trabalhar de empregada. Fui trabalhar com uma amiga fazendo freela, taxa, essas coisas, para me manter, e junto disso fazendo a militância.

 

Mas, então, nesse período em que você ficou casada, você não era envolvida com a militância?

Não. Eu acompanhava, mas não era atuante. Me comunicava com outras pessoas, discutia sobre essas questões… Até porque a gente [pessoas trans] jamais sonhou alcançar essas políticas públicas, decisões judiciais, do Supremo e outras fontes, ter esses direitos que a gente tem. Um exemplo é o nome civil. Tivemos alguns projetos de lei em que a nossa população pedia o reconhecimento do uso do nome social, não era nem o nome civil. Eram desafios que a gente jamais imaginou conseguir romper. A cirurgia de transgenitalização também, nunca se imaginou que a medicina ia avançar a tal ponto. Temos um exemplo vivo aqui no Paraná, a Maite Schneider, que se auto mutilou ao tentar fazer a cirurgia. Nós tivemos a Roberta Close, que foi uma das primeiras aqui no Brasil, mas que fez a cirurgia na Inglaterra. Eram questões com as quais a gente jamais sonhou.

 

E como foi, na infância e na juventude, a sua relação com as outras pessoas? Hoje os adolescentes falam muito mais sobre questões de gênero, mas como era naquela época?

A gente não lia o bullying como bullying, a gente tratava como uma “brincadeira”, mas no fundo nós sabíamos que era uma violência. Mas tínhamos que lidar de alguma forma. Se eu tivesse tido a oportunidade de vivenciar a minha criança trans, a minha criança travesti à época, eu tenho certeza de que, hoje, muito do que eu tenho do meu sofrimento psíquico, mental, da violência sofrida, seria diferente, seria muito mais tranquilo. Não que a violência não fosse acontecer, mas teria sido menos abalante, menos adoecedora.

Na escola eu vivia num grupinho que era o dos “excluídos”, pode-se dizer assim: tinha eu, que era o “gayzinho” da turma, o “viadinho” - era assim que era lido naquela época -, o menino que com 11 anos media quase dois metros, o menino obeso, a menina obesa, o cadeirante, o negro… E nessa fase eu tentava lidar com as adversidades não enfrentando com ódio, mas tentando desmanchar aquilo. Tem uma passagem que eu lembro bem: na quinta série, na Educação Física, eu tinha ido ao banheiro e, quando eu estava voltando, os meninos começaram a falar “Lá vem o viadinho”. E para não entrar em atrito com eles, eu falei “Vocês querem que eu chegue pulando?”. Eu “entrava na jogada” como uma forma de desarmar eles. Porque é isso, quando a pessoa acha que você vai chegar dando pedrada e cacetada e você age assim, você a desarma. Nessa minha fase de ginásio eu construí formas de tentar me desviar do que as pessoas esperavam de mim. Se as pessoas achavam que eu ia chegar brigando, gritando, muito pelo contrário, eu invertia a lógica da coisa, para desarmar, mesmo. A minha passagem pela educação foi tranquila em termos de aprendizagem, mas em termos de violência, sempre existiu.

 

E em casa, com a sua família?

Em casa era tranquilo. Fui eu quem criei os meus [três] irmãos mais novos, eu tinha todos os afazeres da casa. A minha mãe trabalhava e na minha casa sempre teve criança, então eu tinha uma rotina de uma pessoa adulta. Eu acabei criando, de certo modo, uma responsabilidade muito devido a essa minha criação e obrigação que tive com meus irmãos. Mas em relação à questão de gênero, sempre foi muito tranquilo. Não era uma coisa aceita, mas conviviam. 

 

E como você se aproximou da Defensoria?

Quando eu estava na coordenação do Transgrupo, uma das minhas primeiras iniciativas foi chamar a Defensoria para estar com a gente, entender no que ela poderia auxiliar. Eu sempre fui muito provocativa nessa questão, de buscar os acessos, porque a minha mãe nos educou nesse sentido de que quanto mais informação você tiver, quanto mais você conhecer, mais sucesso você vai ter, mais facilmente você vai conseguir resolver as coisas. 

Eu vim conhecer a Defensoria na época em que a coordenadora do NUCIDH [Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos] era a doutora Cinthia [Azevedo Santos, defensora pública] junto com o doutor Wisley [Rodrigo dos Santos, defensor] e foi quando a gente começou a fazer os trabalhos, tanto com direitos humanos como na área de Execução Penal, e com o NUDEM [Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres]. A gente foi costurando parcerias para chegar a ter êxito, porque eu acho que um dos projetos mais importantes que eu tenho é “desencastelar” a Defensoria, levá-la aonde ela precisa estar, principalmente fazendo com que as pessoas saibam da existência da instituição. Hoje eu ainda me surpreendo quando as pessoas dizem que não sabiam que a Defensoria existe. E lá em 2017 o Transgrupo começou a procurar a Defensoria e a puxar os demais. Foi quando começou essa aproximação maior dos movimentos de mulheres, de pessoas encarceradas... 

 

Mas você já conhecia a Defensoria antes?

De ouvir falar e por ter sido uma das pessoas usuárias do serviço. E como usuária a minha experiência não foi muito boa, porque era na época em que você tinha que ir cedo, pegar a senha e voltar às 13h para o atendimento. Então eu cheguei às 5h40 da manhã para entrar na fila e pegar a senha às 7h30, debaixo de garoa, no frio, para voltar às 13h.

Mas foi uma experiência. E isso é uma coisa que eu trago hoje no trabalho que eu desenvolvo: se tem uma coisa que eu prezo muito é justamente agilizar o atendimento, porque eu acho muito desumano uma pessoa ter que aguardar todo esse tempo para ter acesso a um serviço. Eu tento humanizar ao máximo o acesso dos nossos usuários, procuro fazer com que eles entendam o serviço, compreendam melhor a instituição e analisem a melhor forma de acessar o serviço. Porque, às vezes, as pessoas chegam aqui numa ânsia de buscar, de resolver, e naquela pressa, naquela euforia, acabam não entendendo como o atendimento funciona. E eu acredito que a gente tem tido bons resultados, a gente reduziu muito o número de atrasos.

 

Você tem uma trajetória importante nos movimentos sociais e é reconhecida dentro da causa LGBTQIA+, mas como mulher trans você sofre preconceito nesse meio? E em relação aos usuários e às usuárias dos serviços da Ouvidoria da DPE-PR? Acredita que houve mudança desde 2021, quando você assumiu o cargo, até agora?

Sim, o próprio movimento LGBT é muito preconceituoso. Eu falo com propriedade: se você não performa um certo padrão, você já é excluída. Eu sempre falo nas minhas palestras: olhe ao redor. Você tem no seu círculo social mulheres trans negras periféricas, aquelas que não performam uma feminilidade? Tem homens gays afeminados? Homens gays gordos? O nosso próprio movimento é excludente e isso a gente tem que falar. E se você vai para os movimentos da sociedade heteronormativa, piorou. Você tem que ter uma passabilidade, que é uma das coisas que eu nunca busquei, eu sou o que eu sou, não é porque os outros esperam algo de mim que eu tenho que corresponder às expectativas deles, eu tenho que corresponder às minhas expectativas. 

Quando eu assumi a coordenação do Transgrupo eu o levei para lugares que a gente jamais imaginou. E eu posso dizer dos olhares… Daquele que eu acho que é o sentimento mais doloroso da gente, da população trans, que é o preconceito velado. Um preconceito que você muitas vezes detecta, mas não consegue reprimir. Por isso que a gente fala: às vezes é muito mais fácil lidar com uma pessoa preconceituosa que se assume do que com pessoas que dizem que não têm preconceito, mas que no fundo, no fundo, querem te ver longe.

Uma das coisas que eu vou levar para o resto da vida foi a fala da doutora Camille [Vieira da Costa, defensora pública] na minha eleição como ouvidora. Ela disse que gostaria muito de ver a reação dos assistidos ao serem atendidos por uma mulher trans, por uma travesti. E hoje eu posso dizer com alegria que eu nunca tive problema com os nossos assistidos, nunca! Eu sempre fui muito bem tratada, eles têm um respeito gigante por mim. Eu tenho muito mais problemas com pessoas do nosso núcleo interno, que têm conhecimento, que têm convivência, que têm acesso à informação, do que com os próprios assistidos. E isso é uma coisa que me dói um pouco, porque eu não entendo… Me provoca estar em um espaço que se diz acolhedor e ter que passar por algumas situações.

Mas eu, hoje, estou com 49 anos e sou uma mulher trans que já conseguiu romper muitas das barreiras que a gente enfrenta. Eu sempre brinco com todo mundo dizendo que estou naquele estágio da vida que, entre ter razão ou ter paz, eu estou optando pela paz. Eu faço o meu papel enquanto educadora, enquanto uma pessoa que pode contribuir, e é o que eu posso fazer.  Se o outro lado não entende ou não quer entender, não sou eu que vou brigar por isso.

 

Você veio de uma atuação nos movimentos sociais, mas foi sua primeira experiência como ouvidora. De que maneira trabalhar nesta área mudou sua vida pessoal e profissional? Quais tipos de conhecimentos e desafios você só encontrou sendo ouvidora?

A Ouvidoria para mim foi uma ponte para me oportunizar ocupar espaços que eu jamais imaginei ocupar enquanto uma mulher trans. De estar em lugares onde eu tenho certeza de que o meu corpo jamais entraria.

O trabalho que eu desenvolvo na Ouvidoria eu já desenvolvia como sociedade civil, mas com a diferença de que eu tinha públicos alvos definidos, diferente do que eu executo hoje. Essa experiência [de ser ouvidora] eu acho que vai ser uma das melhores e maiores experiências da minha vida. Tem me engrandecido enquanto pessoa, ao entender as mazelas de que eu só ouvia falar e hoje vivencio, me permite me tornar uma pessoa muito melhor do que quando eu entrei aqui. Poder conviver, trocar experiências, e ajudar as pessoas que realmente precisam. Isso pra mim tem sido fantástico.

E era um trabalho que eu já desenvolvia, eu já tinha muito essa coisa de acolher as pessoas. Quando eu estava no Transgrupo a gente fazia abordagens de redução de danos com as mulheres nos pontos de prostituição, trabalhos nas unidades prisionais, trabalho social de entrega de cesta básica e de roupa, campanhas de autoestima. É muito do que a gente vê aqui, mas um pouco diferente.

 

No sentido de que ambos os públicos são vulneráveis? A população trans é, ainda, um público muito vulnerável?

Sim, e o público trans não chegava aqui. Eu não entendia por que esse público não chegava na Defensoria. As mulheres trans, elas também não são filhas, mães, irmãs? Por que quase não temos ações de Família, por exemplo, com essas pessoas? E é por causa do histórico da nossa população, de exclusão familiar e de acesso a direitos. E até por um pouco de desconhecimento do que diz o ordenamento jurídico.

 

Mesmo as pessoas que procuram, por exemplo, os mutirões de retificação de nome - que é uma demanda bem específica -, elas não voltam com uma demanda para os setores da Defensoria, como Família, Cível…?

Não voltam, porque elas acham que não vão ter direito. Até o próprio mutirão de retificação, muitas delas nem sabem desse trabalho da Defensoria. E olha que tem divulgação! Mas é porque essas pessoas se enclausuram em um gueto e dali não saem. Se um dia você tiver a oportunidade de conversar com alguma das meninas que hoje são profissionais do sexo, você vai ver que você não consegue desenvolver uma conversa que não seja voltada à prostituição, nenhum assunto sério. Isso é muito triste. Eu falo isso com muita tristeza, mas elas não conseguem romper esse ciclo da prostituição. Ela até pode conversar com você sobre outra coisa, mas o assunto sempre volta. 

Eu nunca falei isso para ninguém: quando aconteceu a minha candidatura para a Ouvidoria - e isso todo mundo sabe -, eu jamais tive a pretensão de me tornar e de estar ouvidora. Eu entrei para compor chapa com o movimento de mulheres. E, certa vez, depois que eu já tinha aceitado o convite das meninas, eu tive uma crise existencial. De me pegar pensando: será que vale a pena? Eu vou ter que enfrentar monstros que eu já não tenho mais necessidade de enfrentar. Porque eu sabia que ia me deparar com pessoas preconceituosas, com pessoas que não iam concordar com o fato de eu estar ocupando um espaço que elas não reconhecem como um espaço de todos, mas, sim, um espaço para poucos. Então eu tive essa crise, e quase desisti.

E eu nunca imaginei que eu fosse ser escolhida, mas, como em tudo que eu faço quando me comprometo, eu falei para mim mesma: ‘eu não vou dar margem para as pessoas virem me julgar depois’. E fui me preparar, fui estudar a Lei Orgânica, entender o trabalho da Defensoria. Porque, se para uma mulher, a cobrança é árdua, para a gente é surreal. E eu prometi para mim mesma que eu não iria passar por isso, porque era um monstro que eu já carregava, que me cercou várias vezes. No começo da gestão eu tive pesadelos de que eu tinha sido exonerada por falta de produtividade. 

 

E mesmo com uma mulher trans na Ouvidoria, essas pessoas não procuram a Defensoria?

Agora a gente tem uma procura maior, para a retificação, principalmente. Mas agora elas têm vindo e eu tenho achado isso fantástico, porque enriquece as pessoas. Todos aqui atendem elas com o maior cuidado. Acho que isso tem a ver um pouco com esse trabalho que eu tenho desenvolvido e até pelo fato da minha presença aqui neste espaço. Porque embora a gente saiba que não deve ser necessário ter uma pessoa que seja referência para que haja respeito, isso facilita muito o processo. E hoje as pessoas trans só têm elogios ao atendimento.

 

Em janeiro tivemos o primeiro concurso para servidores e servidoras da DPE-PR com reserva de vagas para pessoas trans e você participou da construção dessa política. Como foi esse processo de discussão e quais impactos essa medida terá na democratização da Defensoria, no que diz respeito aos(às) profissionais que atuam aqui? 

O Conselho Superior da Defensoria estava discutindo sobre a implementação de outras cotas e, em uma conversa com a ADEPAR [Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Paraná], a gente decidiu aproveitar. E a Defensoria do Paraná é a terceira defensoria que cria cotas para essa população no serviço público, sendo que temos 26 defensorias estaduais no país [além da Defensoria do Distrito Federal]. E o reflexo disso a gente já vê no número de inscrições. Foram 46 inscrições deferidas e 12 indeferidas.

Na última eleição para a Ouvidoria [em 2023], na qual eu fui reconduzida, teve três pessoas trans concorrendo para a lista tríplice. Acho que isso já fala muito do que é esse trabalho. E eu tenho certeza de que, a partir do momento em que essa população começar a ser vista nesses espaços, a gente vai conseguir ter mais avanços, principalmente no que diz respeito à diminuição da violência contra essa população.

Nós sempre quisemos ocupar o nosso lugar de direito, não esse lugar de vítima em que todo mundo coloca a gente. Tudo o que a nossa população sempre quis, sempre almejou, foi o direito de ser ouvida, a oportunidade de mostrar que temos competência, podemos ajudar a melhorar o trabalho e podemos também estar na linha de frente. E a gente sabe que se trata de oportunidades. 

No último mutirão Meu Nome, Meu Direito que aconteceu em Londrina, eu dei essa notícia para o público - de que teria a reserva de vagas para pessoas trans no concurso para servidores -, e sabe quando você vê o brilho no olhar das pessoas? Eu vi gente chorar na minha frente e dizer “muito obrigada por esse trabalho que você está fazendo”. Mas essa é uma conquista coletiva, não só da instituição. É um trabalho coletivo que envolveu muita gente. Foi muito emocionante.

E, hoje, vendo esse número de pessoas trans que se inscreveram no concurso, posso dizer que nós estamos na vanguarda para melhorar esse mundo, para trazer essa população à luz. Nós somos uma população que sempre foi lida como “da madrugada”, “da meia-noite”, e estamos conseguindo trazer essas pessoas para a luz. Isso para mim é fantástico, é para o resto da vida. 

 

Em relação aos mutirões “Meu Nome, Meu Direito”, que sempre são muito procurados, qual é a importância da retificação do nome para essa população? Como foi a sua experiência pessoal com a retificação e como a gente conseguiu, como Defensoria e como Ouvidoria, colocar esse serviço em prática? 

Antes de eu estar no Transgrupo, a Defensoria fez um mutirão para atendimento de pessoas que estavam fazendo o processo de hormonioterapia no CEPATT [Centro de Pesquisa e Atendimento às Travestis e Transexuais]. Eu fui uma das pessoas que entrou nesse mutirão, mas tive o meu pedido de retificação negado por duas vezes. Outras pessoas conseguiram por meio desse mutirão, eu não.

E eu tenho até hoje a decisão do promotor que negou os pedidos. É uma decisão extremamente transfóbica e violenta. Ele confundiu a posição dele como promotor com a posição de professor de escola dominical religiosa. Isso foi antes de 2018, quando era necessária uma decisão judicial para obter a retificação de prenome e gênero.

E aí, em 2018, quando veio a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal, a ADI 4275/2018], que permite a retificação de maneira administrativa, eu já estava no Transgrupo e eu fui a segunda do Paraná a conseguir fazer a retificação dessa forma. A primeira foi uma menina que auxiliamos em um mutirão que a Defensoria fez dentro do Transgrupo em 2018, um pouco antes da decisão do STF. Ela já tinha o ofício e tudo, então isso facilitou e ela foi a primeira a conseguir retificar o nome. O cartório fez a certidão dela no mesmo dia. Foi fantástico. 

Eu peguei a minha certidão no dia seguinte e foi uma alegria indescritível. Não sei dizer o misto de sensações que eu senti na hora em que eu vi aquele papel. Só que aquilo para mim não foi completo, porque era eu em uma multidão que não tinha o nome retificado. Então, quando eu entrei na Defensoria, uma das coisas que eu trouxe foi essa necessidade de expandir esse trabalho, e aí bolamos o projeto do Meu Nome, Meu Direito.

Em maio de 2022 fizemos em Curitiba o primeiro mutirão e atendemos 150 pessoas. Lembro que a última menina a ser atendida foi exatamente às 21h45. Foi um dia inteiro de atendimento. E a ideia de expandir no interior foi fantástica e é um mérito da instituição acolher essa demanda e entender que a gente precisava fazer isso. Porque foi o que eu disse, essa população por si só não vai buscar. Nós [pessoas trans] temos muito medo do que vamos enfrentar nesses lugares: medo da violência no atendimento, de não ser respeitada, de ser motivo de chacota… Indo até elas com um mutirão, a Defensoria conseguiu alçar alguns degraus de visibilidade para essa população. 

 

E você, que está sempre acompanhando os mutirões, revive com as pessoas atendidas como foi a sua sensação? Você tinha mais de 40 anos quando conseguiu, até então usava um nome que não era o seu... 

Sim, eu tinha o nome de registro, de batismo, e usava o nome social. E ver essas pessoas conseguindo me deixa emocionada, porque é ver a pessoa se libertar de um medo que, embora esse papel não mude muito - pois, mesmo estando retificada, eu ainda escuto perguntas como “qual é o seu nome verdadeiro?” -, o simples fato de poder ver as pessoas acreditarem que vão ficar libertas dessa violência não tem preço. 

Quando o meu documento ficou pronto, nasceu a Karol. Se era isso o que a sociedade queria, se era esse papel que eles queriam para comprovar que eu tinha um nome, então está aqui. E poder ver essas pessoas conquistarem o seu direito é surreal. A gente muda o olhar, a gente consegue arrancar um sorriso dessas pessoas. As pessoas nunca saem dos mutirões aborrecidas. Por mais que muitas vezes seja cansativo e elas tenham que percorrer um outro caminho, elas nunca saem de lá desanimadas e descontentes, é sempre com um olhar de felicidade. É indescritível! 

 

E como você vê a atuação das equipes da Defensoria no mutirão? Houve alguma mudança desde o primeiro até agora, no sentido das equipes se sensibilizarem mais com o público atendido? 

A gente nunca teve nenhum problema, eu posso dizer isso com propriedade. E uma das coisas que me deixa muito feliz é que toda vez que a gente fala em mutirão “Meu Nome, Meu Direito”, todo mundo quer trabalhar. Cada vez mais e mais gente se habilita e se disponibiliza a ir lá fazer o atendimento. 

Eu acho que a gente mexeu um pouco com as estruturas das pessoas. Elas estão entendendo que é um ser humano ali. Não é aquela coisa que muitas vezes você tem como lembrança e como referência, de uma mulher na esquina se prostituindo. Não é só aquilo, é muito mais. É uma pessoa que tem histórias, tem uma família, uma trajetória, tem suas angústias, tem conhecimento... Ela só quer a oportunidade de exercer o direito que é dela de fato. 

 

Voltando ao tema da Ouvidoria da DPE-PR, ano passado ela completou 10 anos. Para você, quais foram as principais conquistas dessa primeira década e no que ainda podemos avançar para oferecer um serviço de qualidade aos usuários e usuárias do nosso serviço?

Nesses dez anos de Ouvidoria eu posso dizer que tivemos muito ganho, principalmente na melhoria do atendimento para a instituição. Por mais que as pessoas presumam que a Ouvidoria é um espaço apenas para reclamações, ela tem sido uma parceira na melhoria do funcionamento da instituição. Olhando para trás, muito do que a Santa [Maria de Lourdes “Santa” de Souza, a primeira ouvidora-geral da DPE-PR] fez como a precursora desse setor, até chegar aonde a gente está hoje, eu acho que avançamos muito: nas tecnologias, nos canais de comunicação e no próprio atendimento presencial, que a gente tem tentado humanizar ao máximo. Para este ano, temos muito progresso pela frente.

No que ainda precisa avançar, sendo bem sincera: precisamos chegar em quem de fato precisa da Defensoria. E eu acho que também é um papel da Ouvidoria essa aproximação. Tem um dito que eu gosto muito que é: se a Defensoria é o povo, o povo precisa se sentir Defensoria.

 

Em 2022, o Paraná sediou o 5° Encontro do Conselho Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas Estaduais do Brasil (CNODP). Como foi essa experiência e como é a relação da Ouvidoria da DPE-PR com as demais ouvidorias das defensorias públicas do Brasil? 

A ideia de trazer o CNODP para o Paraná foi baseada em algo que eu ouvi muito: que os defensores no Paraná são muito fechados, muito “engomadinhos”. Eu quis trazer para cá para desconstruir esse olhar. E eu acho que tivemos um êxito muito grande, pois o pessoal saiu daqui muito encantado com o trabalho da Defensoria do Paraná, pela sua organização, seu desenvolvimento, sua administração e com o trabalho dos Núcleos. Isso é um ganho muito grande. Hoje ouço falar na Defensoria do Paraná com mais entusiasmo do que antes. Agora, “Defensoria do Paraná” tem um soar diferente.

E pode até ser que o fato de a DPE-PR ter se colocado na vanguarda, ao ser a primeira a ter uma mulher trans como ouvidora, também fez com que a gente fosse conhecido. Para vocês terem uma ideia, quando eu fui eleita, as minhas amigas no Canadá ficaram sabendo, e não foi por mim. No Fórum das Américas, o ouvidor do Serviço de Assistência Jurídica do Canadá disse que já tinha ouvido falar sobre mim. E eu nem fazia ideia de que isso tomou a proporção que tomou. 

 

Por sua atuação em frentes como o “Desencarcera Paraná”, “Pastoral Carcerária” e no Conselho da Comunidade você provavelmente já vivenciou situações emocionantes e que te marcaram durante sua experiência no ambiente prisional. Como essa atuação entrelaça com a vivência de Defensoria e também como é a relação desses ambientes com as pessoas LGBTQIA+?

Quando eu vim para a Ouvidoria, todo o meu trabalho nos movimentos, o meu currículo, ajudaram muito. Acabei me tornando um elo entre a instituição e essa população, esse serviço e essa temática, principalmente pensada no público trans. 

Quando eu estava no Transgrupo, eu chamei a defensora Cinthia, na época coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos [NUCIDH], e a defensora Eliana [Tavares Paes Lopes, defensora pública, à época coordenadora do NUDEM] para a gente marcar uma reunião com o DEPPEN [Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná], porque chegavam no Transgrupo casos de violação de mulheres trans e travestis no sistema prisional. Chegava situação de estupro coletivo, estupro corretivo, agressão física, castigo, entre várias outras coisas. 

Minha inquietação era a seguinte: o sistema prisional não tinha unidades prisionais mistas. Se essas mulheres são lidas como de gênero feminino, qual a lógica de elas estarem em unidade masculina? Não tem como manter elas no espaço feminino? Então vamos criar um espaço exclusivo para elas, porque no masculino elas não podem ficar. E a gente também tem uma preocupação - que eu acho que ninguém se atentou até hoje: uma mulher trans no sistema prisional feminino, um ambiente extremamente lido por seus órgãos genitais femininos, está em risco. Porque é um órgão genital masculino em um espaço onde só tem o feminino. Se as mulheres já se relacionam com outras mulheres lá dentro não se lendo como mulheres lésbicas, como que faz com uma mulher de pênis dentro desse espaço? Assim como a gente faz a leitura de homens trans em um espaço de gênero masculino. Esse homem vai morrer. E o espaço feminino não é diferente. Foi assim que a gente pensou na criação de uma unidade exclusiva de acolhimento para essa população. 

A gente tem que dizer que a Defensoria foi a precursora nesse trabalho de provocar o DEPPEN até que a gente conseguisse chegar nessa unidade prisional [a Cadeia Pública de Toledo, que custodia pessoas gays, travestis e transexuais de todo o estado]. Não é o melhor, mas a gente está caminhando para uma melhoria. Só o fato de elas não estarem no meio dos homens, correndo o risco que elas corriam, isso já é um alento pra gente.

 

E você acha que o fato dessas pessoas estarem em um ambiente mais “acolhedor” para elas, entre pessoas que se identificam e se respeitam - mesmo que continue sendo uma prisão - facilita o processo de ressocialização?

Com certeza. Muitas pessoas dizem que estamos segregando, mas não é isso. Essa história de achar que os homens as querem por perto porque elas são legais é falsa. Eles não as querem por perto. Ou eles as querem por perto para se satisfazerem ou para autodefesa, porque se acontecer alguma coisa na cadeia elas vão ser as primeiras a serem usadas como escudo.  

A gente também se baseou em pesquisas que mostraram que mulheres trans presas preferem estar em lugares onde só estejam mulheres trans, onde elas estejam entre pares. Porque essa violência que elas sofrem é absurda, elas sofrem externamente e internamente simplesmente por serem quem são. Teve uma situação em Rio Branco do Sul que me marcou muito, de uma menina dizer que ela preferia mil vezes estar lá dentro, presa, do que estar em liberdade. Vocês conseguem imaginar o sofrimento que essa pessoa está passando para ela chegar ao ponto de abrir mão da própria liberdade?

 

E histórias boas? Dentro ou fora do cárcere, como ouvidora... 

Tem muitas histórias boas. A conquista do hotel social para mulheres trans que vivem em situação de rua. Hoje elas têm um lugar para ficar, um lugar onde elas são respeitadas enquanto do gênero feminino. A quantidade de pessoas que hoje estão aí com o seu nome retificado, podendo apresentar um documento sem que ninguém questione quem elas são “de verdade”...

E tem a história de um homem trans que conseguiu a retificação do nome aqui pela Defensoria, e foi graças à retificação que ele conseguiu se manter no trabalho. Até hoje, quando ele fala comigo, ele diz: ‘Olha, pode passar o tempo que passar, eu nunca vou saber como te agradecer’.

Eu sou muito fã do trabalho da Defensoria, eu acredito muito nesse trabalho. Hoje eu executo o meu trabalho na Ouvidoria com muita paixão. Só quem experiencia estar em uma Ouvidoria, que vivencia as angústias, as amarguras, todas as situações, vai entender o que é esse trabalho. E eu gosto muito disso, é um trabalho que eu já executava e a Ouvidoria só veio mostrar que eu estou no caminho certo.

 

Para terminar: quem é você fora da Defensoria? O que você faz no seu tempo livre? Quais são os seus passatempos? O que você gosta de ler, assistir, ouvir…? 

Fora da Defensoria eu sou uma pessoa muito solitária, mas eu amo a minha solidão. Amo ficar em casa, quietinha. E eu gosto muito de costura. Não tenho muito o hábito de assistir filmes e séries, eu sou uma negação para essas coisas. 

Eu sou muito pacata, muito tranquila, muito zen. Eu gosto de sair à noite para dar uma espairecida, ver gente… 

 

Você gosta de costura? 

Sim, eu costuro. Eu sou estilista de formação, eu adoro costurar. Agora no recesso [judiciário] eu reformei tudo o que eu tinha de roupa: troquei zíper, fiz barra, preguei botão, cortei, ajustei…

Eu tinha um projeto de costura pelo Transgrupo, que agora é um planejamento para o futuro, para depois que eu sair da Ouvidoria, de criar uma cooperativa de costura só com mulheres trans, para ensinar o ofício e para que elas façam disso uma renda. Porque a prostituição, para elas, é uma fonte de renda, mas se tornou um perigo. Já era perigoso, mas hoje está muito mais, devido às questões que a gente vivencia no país. E também está escassa, porque o sexo se banalizou, hoje basta um clique e você tem. E a costura, pode parecer que não, mas sempre tem mercado. Então a cooperativa é um projeto para o futuro, para formá-las para um futuro melhor.

E para este ano, eu quero vê-las mais presentes no curso de defensores e defensoras populares. Se não conseguirmos, vou apresentar um projeto para que a gente faça uma formação de educação em direitos para elas, para, quem sabe, no futuro, a gente tenha uma mulher trans na área de Família brigando pelos seus direitos, como assistida e, por quê não?, também como defensora pública.