Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com Dieikson Braian Ribeiro, assessor jurídico da DPE-PR em Francisco Beltrão 28/04/2023 - 08:38

O sorriso largo é uma marca do assessor jurídico da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) em Francisco Beltrão Dieikson Braian Ribeiro, 26 anos, mas esconde uma história surpreendente. 

Nascido em uma das ocupações mais emblemática dos anos 1990, em Rio Bonito do Iguaçu, onde passou os anos iniciais de sua vida, Ribeiro conviveu com a violência no campo, com o assassinato de seu pai e com inúmeras dificuldades impostas pelas circunstâncias na época. Essa bagagem de vida e o exemplo da sua mãe, no entanto, parecem ter sido combustível para se tornar o cidadão e servidor público que é hoje. “O estudo conseguiu me dar valor, conseguiu me dar luz, me dar o poder de me posicionar na sociedade e dizer: "olha, eu, Dieikson, saí de lá e estou aqui", disse, durante a entrevista, concedida à Assessoria de Comunicação (ASCOM) por videoconferência.

Ele é o entrevistado da série “Com a palavra, a Defensoria” deste mês e representa não só a diversidade dentro da instituição, mas a complexidade que cada indivíduo traz consigo, o que enriquece o trabalho e contribui para uma sociedade melhor. 

Imagens do assessor jurídico Dieikson Braian Ribeiro na Defensoria em Francisco Beltrão.

Você nasceu em Laranjeiras do Sul e esteve presente na maior ocupação do Sul do Brasil em 1996. Como foi?

Nasci no dia 8 de maio de 1996, em Laranjeiras do Sul (região centro-oeste do Paraná), mas a minha família morava em Rio Bonito do Iguaçu, cidade próxima dali. Os meus pais, cerca de um mês antes do meu nascimento, moravam em Mangueirinha, cidade mais próxima de Palmas. Em abril daquele ano, deslocaram-se com outros familiares e um grupo grande de pessoas até Rio Bonito do Iguaçu. Ali começaria uma das maiores ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que se tornou um símbolo a luta pela terra. A minha mãe estava grávida. Eu até falo até hoje: "mãe, você se arriscou, foi corajosa". 

No dia 17 de abril de 1996, houve a ocupação. Tem uma foto muito simbólica do fotógrafo Sebastião Salgado, de quando rompem as porteiras da fazenda. Tem uma pessoa com uma foice na mão, seguida por uma multidão de pessoas. Meus pais estavam entre aquelas pessoas. Então, 20 dias depois, eu nasci. Eu fui a primeira criança que nasceu após aquele acampamento ser formado. Assim que a minha mãe teve alta na maternidade, voltei para o acampamento onde tínhamos um barraco de lona, em chão batido, às margens da rodovia e próximo do rio Xagu.

Como era o local onde vocês ficavam?

O acampamento começou próximo a uma ponte. Era chamado de Buraco (assentamento Ireno Alves dos Santos), porque era uma baixada. Houve um questionamento na época sobre a segurança das crianças no acampamento. Como era maio, foi se aproximando o frio, os moradores faziam fogo para se aquecer e para cozinhar, e se formava uma fumaça. Algumas crianças, posteriormente, acabaram falecendo, pois contraíram pneumonia e dificuldades respiratórias por causa do ambiente.

Você chegou a ficar doente também?

Sim. Fui internado com pneumonia e, nessa época, a minha mãe queria abandonar o acampamento e ir para outra cidade. Ela temia pela minha vida. Meu pai fez um contraponto e insistiu para que ficássemos no acampamento, pois ali havia uma esperança de conseguirmos um pedaço de terra. Ele tinha o sonho de ter um sítio. E o local era uma grande área sem produtividade.

Quando você conta a sua história, dá para perceber o orgulho do seu passado. Como isso impactou sua vida?

Olha, tem toda essa parte, quase romantizada, de estar no movimento social. Mas, na realidade, quem vive, quem está lá, sofre de muitas carências. Eu imagino minha mãe, num barraco de lona, com uma criança. Você passa por dificuldades. Na época, houve a divisão da terra, a desapropriação do imóvel, e nós fomos para um sítio, onde morei alguns anos, sem energia elétrica em casa. Não tinha chuveiro quente, não tinha televisão. Passei por essas carências na minha infância. É nesse contexto de luta, de reivindicação de direitos, que percebi que essa era uma grande causa. Mas, na época, eu sentia o sofrimento. Morar no interior, sem energia elétrica. Então, quando fui morar na cidade, era tudo muito novo, surpreendente. 

Por essa minha história, consigo ter empatia com os assistidos e assistidas, com o público da Defensoria que vive nessa realidade. Eu, às vezes, fico pensando: "o assistido está enfrentando essa dificuldade, mesmo em 2023, sem energia elétrica em casa...". Passei por isso em 1996. Consigo enxergar aí um pouco da realidade pela qual eu passei. 

Como você analisa a questão da moradia hoje?

Falta de política pública. Essas ocupações são fruto de uma necessidade. É o desespero, falta de opção, de não conseguir pagar o aluguel, de não ter acesso a um crédito ou alguma forma de adquirir um imóvel. As circunstâncias empurram as pessoas para aquele local.

Quando você saiu do acampamento? E como foi?

Foi uma parte difícil da minha vida. Quando eu tinha por volta dos oito ou nove anos, meu pai e minha mãe se divorciaram. A minha mãe se mudou para Curitiba e eu fui com ela. Visitava meu pai nas férias e em feriados. Eu ia para lá, ficava com ele de vez em quando, e cerca de um ano depois, meu pai foi assassinado. Tenho ainda pouca compreensão sobre isso. Já tentei buscar informações, mas como ocorreu em 2005, os registros eram um pouco precários. Por se tratar de uma região de um vasto acampamento, até as autoridades começarem a apuração, demorou um pouco. 

O caso foi arquivado?

O caso foi arquivado sem encontrar o autor. Meu pai foi assassinado na casa onde moramos no acampamento. Já era um sítio, como falei. É uma interrogação muito grande. Quem foi? Quem fez isso? Por que fez isso? Na época, ouvimos boatos de que estavam pressionando meu pai a vender o imóvel. Algumas pessoas do próprio assentamento estavam comprando outras propriedades. Havia comentários de que meu pai não queria vender a terra. Minha mãe tentou retornar de Curitiba para morar ali, e na época, ela sofreu ameaças. Também foi pressionada para vender. 

Como foi sua vinda para Curitiba? Como você chegou ao mundo do Direito?

Naquele período, a realidade era muito diferente. Eu convivi com pessoas de realidades diferentes, tive acesso, por exemplo, a uma televisão. Saí lá do interior de Rio Bonito do Iguaçu para o Jardim das Américas, em Curitiba, onde minha mãe trabalhava em um restaurante como cozinheira. Foi uma mudança gigante. 

Depois do falecimento do meu pai, nós nos fixamos mesmo em São João, outro município no interior do estado. Em 2010, chegamos em Francisco Beltrão, onde havia uma promessa de trabalho na antiga Sadia. Logo, uma colega me falou que cursaria a faculdade de Direito e isso me despertou a curiosidade. Não conhecia ninguém da área. Lembro que eu entrei em um curso de inglês, que pagamos com o dinheiro do Jovem Aprendiz, e conheci um colega de turma que era advogado. Percebi como era bacana a atividade e prestei vestibular para a Unioeste, que é a Universidade Estadual do Oeste do Paraná, onde fui aprovado. Isso deu uma guinada na minha vida. Percebi que determinados espaços nos dão lugar de fala. O estudo conseguiu me dar valor, conseguiu me dar luz, me dar o poder de me posicionar na sociedade e dizer: "olha, eu, Dieikson, saí de lá e estou aqui".

Como foi estudar em Francisco Beltrão, um homem negro com história ligada aos movimentos sociais?

Na foto de formatura, somos eu e um outro colega negro, que veio do Rio de Janeiro.  O resto é um quadro de pessoas brancas. Se você pegar a foto da 13.ª turma de Direito da Unioeste e olhar os quadros das turmas anteriores, percebe-se um padrão. É a realidade da região. Eu sou o erro da regra. Não era pra eu estar lá. Não basta querer, mas muitas vezes, pequenos incentivos mudam a trajetória de alguém. Tive uma professora no Ensino Médio que se dispôs a dar um curso de redação aos sábados de manhã. Então, eu ia para o curso. Lembro que errei algumas questões no vestibular, mas o que me salvou foi a redação. Eu devo a minha vida hoje às aulas de redação de sábado de manhã.

E como é sua vida dentro da Defensoria? Como você chegou até a Defensoria? 

Foi depois da minha graduação. Eu entrei numa pós-graduação em Direitos Humanos na Universidade Federal da Fronteira Sul. Durante a pós-graduação, debatendo temas relacionados às minorias e populações vulneráveis, conheci a Defensoria Pública em Francisco Beltrão. Vi um edital de estágio e me inscrevi. Deu certo. É identificação.

Você acha que toda a tua história convergiu para você ser um servidor da Defensoria? Pretende ser defensor público?

Até eu trabalhar na Defensoria Pública, não pensava em fazer concurso. Depois que passei a ter contato com a instituição, com os defensores Pedro (Pedro Martins e Renato (Renato Martins de Albuquerque), que me receberam de braços abertos, senti que esse pode ser meu caminho, também. É um trabalho de formiguinha que tem um impacto muito grande na vida das pessoas. 

Acho sensacional esse atendimento ao público feito pela Defensoria: fazer esse meio de campo entre o mundo de formalidades que é o Poder Judiciário e aquela pessoa, de chinelo, aqui na porta da instituição. É muito satisfatório conseguir traduzir toda essa burocracia para eles e dizer: "olha, vai te acontecer isso, pode te acontecer aquilo".

Como você vê o papel do servidor na Defensoria?

É muito importante. Fundamental. Abracei esse trabalho onde eu estou desde fevereiro do ano passado. Tem sido muito realizador esse período que eu estou na Defensoria. Tenho aprendido muito. Hoje o meu trabalho se concentra mais nos processos criminais.

Coincidência você ingressar na área Criminal tendo a história de uma vítima de um crime na família…

São muitas sessões de terapia para trabalhar essas complexidades da vida e as interpretações que damos aos fatos que aconteceram. Muitas vezes, estou aqui fazendo a defesa de pessoas acusadas de homicídio. Eu não sei explicar, sabe? Ao longo da faculdade, já gostava da matéria. 

Gostaria de falar sobre algo que eu não perguntei?

Sim. Uma das coisas fundamentais que tenho na vida é o exemplo da minha mãe. Quando eu era adolescente, depois de tudo que passamos, ela começou a fazer faculdade, formou-se em Pedagogia. Hoje ela é professora da rede municipal de ensino aqui do município. A questão da educação sempre foi muito presente na minha vida. Depois da minha pós-graduação, eu passei no Mestrado em Educação, aqui na Unioeste, também. O meu projeto se destina a pesquisar os adolescentes internados que cumprem medidas socioeducativas. A Defensoria me despertou o interesse por essa área. Muitos jovens que tiveram uma realidade como a minha hoje são adultos presos. Uma pessoa que estudou comigo na quinta série, hoje já adulta, por exemplo, está no presídio. As nossas vidas, em determinado momento, estavam juntas e, de repente, se separaram tanto. Então, fiz um projeto destinado a pesquisar esses adolescentes que estão em situação de internamento. Meu sonho é também trabalhar como professor.