A falência do modelo punitivo 11/01/2017 - 12:40

Estão sendo amplamente noticiados os eventos com mortes ocorridos no interior de Penitenciárias do Amazonas (67 mortos), Roraima (33 mortos) e Paraíba (2 mortos), que totalizam 102 mortes nos primeiros dias de 2017. Houve manifestações de apoio a estes eventos, motivo pelo que se entende que é necessária uma reflexão mais complexa sobre o ocorrido.

Há algum tempo a sociedade tolerou a crueldade do regime escravocrata. Tolerou-se, também, os campos de concentração nazistas. Considerável parcela populacional tolera, atualmente, a autotutela de “justiceiros”, em que pessoas que supostamente cometem delitos são sumariamente condenadas e sofrem castigos corporais logo após referida conduta.

Versões contemporâneas de navios negreiros e campos de concentração também são tolerados. Selecionados do sistema penal – predominantemente os pobres, negros e moradores da periferia – são encaminhados a presídios superlotados e desprovidos das condições materiais necessárias para o convívio humano.

Nesta linha, político se manifestaram publicamente com conteúdos que podem ser interpretados como positivos aos eventos citados, como “Vamos lá Bangu” e “famílias de bem estão aplaudindo de pé”. Ainda, segundo o próprio Governador do Amazonas, “não havia santos” entre os mortos (G1, 04/01/2017, 'Não havia nenhum santo' entre os mortos em rebelião, diz governador).

Em retórica alegação de cumprimento da justiça de indefiníveis e abstratas “pessoas de bem”, incita-se a punição desproporcional e extrajudicial, dando a entender que na vigência da atual Carta Magna há espaço para a milenar lei de Talião, cuja máxima é olho por olho e dente por dente. Tenta-se, assim, estabelecer um regime jurídico balizado na vingança privada.

Entretanto, temos que refletir de modo mais complexo acerca da ineficiência do sistema prisional como política de segurança pública. A política criminal se socorre da pena privativa de liberdade como refúgio da retribuição sancionatória da condenação criminal. Mesmo com o esforço legislativo para reduzir a população carcerária insculpido na lei de drogas, na lei que estabeleceu medidas cautelares alternativas a prisão e no estabelecimento de audiências de custódia, o crescimento da população prisional não desacelerou.

Na mesma velocidade em que a população carcerária aumenta, os índices criminalidade acompanham: atualmente o Brasil concentra 13% dos homicídios do mundo, mesmo com um aumento da população carcerária médio de aproximadamente 7% ao ano nos últimos 25 anos.

Referida disruptura chancela que não é possível sustentar um sistema prisional do porte brasileiro, sendo esta equivocada política de segurança pública. O aumento da população carcerária deve ser acompanhado pelo acréscimo orçamentário a esta área, o que é impossível na atual situação financeira de qualquer Estado, mesmo dos países desenvolvidos. Assim, a decorrência é lógica: aumenta-se a população carcerária sem possibilidade se incrementar as condições materiais de aprisionamento. Os presos ficam em condições cada vez mais inadequadas, sendo força motriz ao tensionamento, auto-organização e reincidência delitiva.

Com a população carcerária saturada, a cada pessoa presa, uma deve ser solta. A cada pessoa solta, esta está em condição favorável a cometer novo delito, já que passou por período estigmatizador. O ciclo se repete e a criminalidade aumenta. Tudo isso fomentado por um sistema prisional absolutamente oneroso sob o aspecto financeiro para o Poder Executivo, e amplamente adotado pelo Poder Judiciário.

Deve-se destacar que o Estado do Paraná, mesmo com um orçamento de R$ 136,2 milhão ao sistema penitenciário – o que representa R$ 3.016,00 por preso – é um dos poucos estados que ainda mantem presos em Delegacias de Polícia: são, aproximadamente, nove mil presos em delegacias superlotadas (Gazeta do Povo, 01/08/2016, “Gasto por preso passa de R$ 3 mil e Paraná estuda privatizar presídios”). Referidos presos devem ser encaminhados a Penitenciárias ou Presídios, estabelecimentos legalmente forjados para este confinamento.

A Defensoria Pública, ainda em fase de estruturação no Estado do Paraná – que abriga a 4ª maior população carcerária do Brasil – conta apenas com 16 defensores públicos que atuam em favor dos quase 30.000 presos que executam pena em regime fechado e semiaberto, em 29 unidades prisionais. Trata-se do único órgão que atua em favor da redução do poder punitivo estatal, como órgão de execução da pena e patrona processual de quem não constitui advogado.

Nesta perspectiva, é de se destacar que a Defensoria Pública do Estado do Paraná, em fevereiro de 2014, com poucos meses de atuação e baixo número de membros, promoveu pedido de relaxamento coletivo em 14 comarcas do Estado do Paraná, a fim de atacar o problema dos presos em delegacias de polícia. Referidos pedidos, sob alegações de cunho processual, foram rejeitados pelo Poder Judiciário (G1, 19/02/2014, Defensoria Pública do PR pede pela liberdade de presos de delegacias).

Ainda, não é de se ignorar que os responsáveis pelo maior massacre do sistema prisional brasileiro, o Carandiru, foram recentemente absolvidos pelos crimes praticados no Estado de São Paulo (Folha de São Paulo, 27/09/2016, TJ anula julgamentos que condenaram 74 PMs no massacre do Carandiru): evidencia-se a seleção do sistema punitivo, em que as vítimas e os autores determinam o resultado retórico do julgamento.

As violações de direitos de presos fazem com que se fomente a organização entre esses presos, fator que gera inerente tensionamento e podem culminar na violência que verificamos. O Estado – presente para punir e ausente nas garantias de direitos – cede lugar para organizações prisionais que ditam as suas regras e executa as suas próprias determinações. A ausência de prestação estatal que em algumas circunstâncias garante ao preso sua segurança e o mínimo da dignidade, contrapartida onerosa para o preso, para as suas famílias e para a sociedade como um todo.

Infelizmente, com o último Decreto de Indulto publicado em 23/12/2016 pelo Poder Executivo Federal, verifica-se que a tendência política de segurança pública baseada no fomento ao aprisionamento, já que o direito ao Indulto foi severamente restrito e o direito à Comutação de pena, excluído.

Diante da horrenda barbárie, amplamente noticiada, ocorrida nos Estados do Amazonas, Roraima e Paraíba – diferentemente de culpar as vítimas -, deve-se chamar a atenção para o fracasso do atual modelo punitivo, notadamente pelo abismo existente entre o que prevê a lei e o que se verifica na prática. Priva-se de liberdade com o fim de retribuir o mal praticado pelo apenado com a promessa de utópica e abstrata “ressocialização”. Em verdade, o sistema penal lhe impõe pena corporal mais agravada do que a privação de liberdade decretada em sentença condenatória. Inflige, em suma, se não a morte física, a morte social.

Diante da barbárie praticada contra algumas pessoas, sejam elas consideradas boas ou ruins segundo os valores morais de cada um, o sentimento de empatia e reflexão acerca do fracasso da política penal é substituído pela rasa vingança.           

Camille Vieira da Costa é Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná. Henrique Camargo Cardoso é Defensor Público de Execução Penal.

 

Este texto, em versão resumida, foi publicado na seção de Artigos do jornal Gazeta do Povo no dia 11 de janeiro de 2017. Clique aqui e confira.

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