A educação emancipadora do Curso de Defensoras e Defensores Populares
20/04/2020 - 14:41

São mães, país, avós e vizinhas (os) que saem do curso com a responsabilidade de serem agentes transformadoras(es) nos lugares onde vivem.

 

Duzentas horas-aula divididas em oito meses de muita teoria, prática e aprendizado. Esse foi o caminho que Aglair do Rocio Freitas do Nascimento, Neuzely Martins Henrique e Sirleide Santana de Oliveira percorreram para se tornarem defensoras populares. E “populares” mesmo. As três são figuras notórias nas comunidades onde moram, em Paranaguá.

Aglair, também conhecida como Nega, vive há 30 anos em um bairro de nome sugestivo: Jardim Esperança. Lá, desde que chegou, aos 11, não mede esforços para ajudar quem necessita. “Sempre participei de campanhas em prol daqueles que mais precisam, colaborando para a evolução da minha comunidade”, conta. Ao ficar sabendo do Curso FIC Defensoras e Defensores Populares, não hesitou e foi logo se inscrever. Formou-se em 2018 e, desde então, faz uma diferença ainda maior no bairro e arredores.

E, se tem algo que a formação a proporcionou, é confiança. Ela, que já sofreu violência doméstica, agora usa o conhecimento obtido para auxiliar outras mulheres. “Eu vivi a violência doméstica, o abuso, e hoje sei como me defender e passo isso para as pessoas com firmeza, de forma que elas pensem que, se eu consegui superar, elas também conseguem”, relata Aglair. E não para por aí. Nega, regularmente auxilia as mães da escola especial onde o filho autista também estuda. Por viverem em situação de vulnerabilidade social, muitas delas desconhecem os direitos que têm.

Juntamente com outras(os) cinco defensoras(es) populares, ela integra o Núcleo de Direitos Humanos Marielle Franco. Com sede no campus do IFPR na cidade, o Núcleo é responsável por prestar orientação sobre direitos às(aos) moradoras(es) e organizar oficinas e mutirões populares, estes últimos com o devido acompanhamento de membras(os) da Defensoria Pública do Estado do Paraná. Aglair classifica a participação no curso como uma experiência maravilhosa. “Saber que, de alguma forma, estou levando assessoria para pessoas que não têm conhecimento sobre seus direitos é muito gratificante”, diz.

E é com esse mesmo sentimento de gratidão que Neuzely finalizou o curso. A paranaguara residente do Jardim Ouro Fino é frequentadora assídua dos cursos do IFPR e com o de Defensoras e Defensores Populares não foi diferente. Colou grau na mesma turma que Aglair e, assim como a amiga, faz parte do Núcleo de Direitos Humanos Marielle Franco. Para ela, qualquer dedinho de prosa é oportunidade para disseminar o conhecimento que ganhou. “Participei de cinco [dos seis] mutirões populares, mas tento ajudar a todos sempre que posso e em qualquer lugar”, conta.

Foi através do curso que entendeu o conceito de violência doméstica e aprendeu sobre as diversas áreas do direito. “[Os direitos] estão na nossa Constituição e quase ninguém conhece”, lamenta. E, se antes ela era uma mulher retraída e com receio de falar, hoje é uma pessoa de mente aberta e sem medo de buscar seus direitos. “Agradeço muito o aprendizado e recomendo o curso para todo mundo, principalmente para as mulheres”, finaliza Neuzely.

Sirleide também estava entre as(os) dezenove formandas(os) da turma em Paranaguá. Apesar de já ter participado de outros mutirões antes de ingressar no curso, sente que agora pode tirar dúvidas e fazer encaminhamentos com mais qualidade. “Antes de fazer o curso eu entendia pouca coisa, hoje estou apta e atualizada para ajudar mais a mim e ao meu próximo”, comemora.

Ela relata que já sofreu os cinco tipos de violência contra mulher (física, moral, patrimonial, psicológica e sexual) e que, apesar de tudo que passou, não se deixou abater. “Ainda assim procurei ajudar ao próximo, sempre com responsabilidade”. Além de integrar o Núcleo de Direitos Humanos Marielle Franco, Sirleide participa do grupo de luta por moradia de Paranaguá. Ficou sabendo do curso enquanto estudava e assim pretende continuar: aprendendo. “Eu fazia EJA no Colégio Porto Seguro quando vi os cartazes”, lembra.

Além delas, o curso já formou mais 81 defensoras e defensores populares. Ao todo, foram quatro turmas, sendo duas em Curitiba e duas em Paranaguá. Com a parceria firmada pela Defensoria Pública do Estado do Paraná, através do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) e da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná (EDEPAR), junto ao Instituto Federal do Paraná (IFPR) e à Defensoria Pública da União (DPU), o curso forma pessoas capacitadas para reconhecer ofensas aos direitos humanos e replicar os conhecimentos nas comunidades onde residem.

“Por meio da educação em direitos, promovemos a informação. A informação ao cidadão. E, esse processo de educação auxilia muito para sairmos da situação de tanta desigualdade social em nosso país”, comenta o defensor público-geral do Estado, dr. Eduardo Abraão. A Defensoria Pública presta assistência jurídica em sentido amplo, inclusive fornecendo educação em direitos, como acontece no Curso de Defensoras e Defensores Populares.

Segundo a defensora pública dra. Cinthia Azevedo Santos, a atuação da DPE-PR acontece por meio da participação de defensoras(es) públicas(os), que “levam para as questões discutidas o viés jurídico e apresentam meios processais e extrajudiciais para identificar e resolver os conflitos e disseminar as informações”. Dentre os assuntos abordados, estão conteúdos sobre direitos humanos, da mulher, de família, saúde e previdenciário. 

Mas o aprendizado não fica restrito à sala de aula. Elas(es) têm a oportunidade de observar como é realizada a orientação jurídica e a triagem socioeconômica, além de acompanhar alguns atendimentos feitos na Defensoria. “Ficou decidido que os defensores públicos abordariam as questões de processos, legislação e atendimento, enquanto os docentes do IFPR contribuiriam com as áreas de psicologia e assistência social”, conta Roberto Martins de Souza, professor do Instituto.

O curso, realizado na modalidade de Formação Inicial Continuada, popularmente conhecida como FIC, foi inteiramente pensado para atender o público alvo: pessoas maiores de 18 anos com o desejo de transformar. Como o intuito era atingir o público atendido pela Defensoria, também foram definidos critérios de renda. A adesão foi imediata. Uma das turmas chegou a contar com 120 inscritas(os) para 35 vagas.

Aglair e Sirleide não são exceção. Roberto conta que, em Paranaguá, as turmas eram formadas, em grande parte, por mulheres que passavam por situações de violência. “Nós percebemos a necessidade de capacitar essas mulheres com conhecimentos básicos e noções de direitos, além de abordar outros direitos relativos ao cotidiano da população periférica da cidade”, diz o professor, que também é coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do IFPR, o NUPOVOS.

Sobre o impacto do curso na vida dessas mulheres, Roberto é categórico ao dizer que elas passam de vulneráveis para agentes de transformação social. “A primeira resposta é que elas se empoderem para tomar atitudes que mudam a situação em casa. Depois, percebemos atuações a nível de família ampliada, com parentes e vizinhos”, finaliza.

A dra. Cinthia, que participou ativamente do desenvolvimento do curso, também destaca a autonomia proporcionada, uma vez que “eles se capacitam profissionalmente para identificar possíveis violações de direitos e podem agir de forma ativa, como sujeitos de direitos”. Ela comenta, ainda, que o exercício prático do direito ocasiona a ressignificação dos direitos humanos fundamentais. “O compartilhamento espontâneo do conteúdo pelos defensores populares formados viabiliza a crítica e busca de meios para alcance da justiça institucional e social”, finaliza a defensora pública.

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