STF reafirma que acesso à creche é direito fundamental que beneficia crianças e mulheres 26/09/2022 - 09:08

Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) da última quinta-feira (22/09) fixou o entendimento de que a educação básica é um direito fundamental e garantiu o dever constitucional do Estado de assegurar vagas em creches e na pré-escola às crianças de até 5 anos de idade. A corte ainda decidiu que esse direito é de aplicação direta e imediata, sem que haja a necessidade de regulamentação pelo Congresso Nacional. Por unanimidade, o plenário do STF também estabeleceu que a oferta de vagas para a educação básica pode ser reivindicada na Justiça por meio de ações individuais. A decisão tem repercussão geral e foi discutida no Recurso Extraordinário (RE) 1008166, um caso de Santa Catarina. Mas a decisão gera impactos em todos os estados, incluindo o Paraná. Só entre 2019 e 2022, a Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR) ajuizou mais de mil ações reivindicando vagas em creches em diferentes municípios do estado, de acordo com dados divulgados pela Coordenadoria de Planejamento da instituição.

“O reconhecimento do STF nestes termos de repercussão geral [com impacto para todos os casos semelhantes], é positivo, pois reconhece que, caso não haja a prestação de serviços que promovam o direito da criança, estaremos certamente diante de uma situação ilícita, e o Estado pode ser responsabilizado por isso, inclusive com pedido de indenização”, afirma o coordenador do Núcleo da Infância e da Juventude (NUDIJ), defensor público Fernando Redede.  

Para Redede, o município precisa e deve fornecer a vaga solicitada pelo cidadão ou cidadã. “Caso isso não ocorra, a Defensoria, como trata-se da negativa de um direito, pode fazer um requerimento administrativo ou ajuizar uma ação”, explicou Redede. Atualmente, o NUDIJ possui um procedimento administrativo para coletar informações sobre as políticas públicas na área da educação infantil. Segundo o defensor, com a decisão do STF, não é possível que os municípios continuem alegando falta de recursos para garantir o direito, pois é preciso que os municípios aloquem os recursos para atender as crianças, já que a Constituição e o Estatuto da Criança e dos Adolescente afirmam que esse grupo populacional tem prioridade absoluta na formulação e na execução de políticas públicas.  

“Estamos coletando informações junto às prefeituras para saber a quantidade de crianças não atendidas e os orçamentos que estão sendo aplicados para essa política, para podermos analisar quais são os locais onde há o déficit de vagas e onde há maior dificuldade de acesso ao serviço. Assim, podemos atuar coletivamente por vias administrativas ou judiciais”, comenta Redede. 

Perspectiva de gênero

De acordo com texto publicado na página do Supremo, a presidenta da Corte, ministra Rosa Weber, lembrou, ao votar, que o direito não é exclusivo das crianças, mas também das mulheres que são mães. Ela ressaltou que a oferta de creche e pré-escola é imprescindível para assegurar às mães segurança no exercício do direito ao trabalho e à família, em razão da maior vulnerabilidade das trabalhadoras na relação de emprego, já que elas enfrentam maiores dificuldades para a conciliação dos projetos de vida pessoal, familiar e laboral. “Em razão da histórica divisão assimétrica da tarefa familiar de cuidar de filhos e filhas, o tema insere-se na abordagem do chamado constitucionalismo feminista”, escreveu Weber.

A ministra afirmou ainda, conforme texto publicado pelo Supremo, que esse direito social tem correlação com os direitos à liberdade e à igualdade de gênero, pois proporciona à mulher a possibilidade de ingressar ou retornar ao mercado de trabalho. Segundo ela, o direito à educação básica não pode ser interpretado como discricionário, e sim como uma obrigação estatal, imposta sem condicionantes, configurando omissão do Estado quando este não o garante. “Os recursos públicos devem ser bem geridos e, consequentemente, utilizados na aplicação do direito à educação”, enfatizou.

Para a defensora pública Camille Vieira Costa, autora da dissertação “A política de creche como instrumento de igualdade de gênero” pelo Curso de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná, a decisão do STF é inovadora porque cria um arcabouço jurídico que permite levar a perspectiva de gênero até o Judiciário no pleito por vagas em creche.  

“Entendo que mais que um direito da criança, a decisão é também encarada na perspectiva de gênero como um direito da mulher. O que eu acho mais inovador nessa decisão é a possibilidade de levar ao Judiciário uma perspectiva de gênero. A própria ministra coloca que essa decisão também dialoga com o constitucionalismo feminista”, afirma a defensora. 

Segundo ela, como essas questões são discutidas normalmente nas Varas da Infância e Juventude, especializadas nos direitos das crianças e adolescentes, essa perspectiva é colocada de lado. “Agora, com este novo contexto, a Defensoria pode ressaltar também a perspectiva de gênero para conseguir garantir esse direito. O direito da criança é de fundamental importância, mas a perspectiva de gênero não pode ser invisibilizada”, ressalta. 

De acordo com ela, a decisão é um ganho, sobretudo, para as mulheres que estão no trabalho informal. “Elas não têm licença maternidade nem direito a férias. Não há nenhum outro direito trabalhista direcionado a elas. A decisão tem impacto muito grande para as famílias de baixa renda e para as mulheres em situação de alta vulnerabilidade porque temos um grande número delas exercendo trabalho informal. Grande parte delas é negra, chefe de família e mãe solo. É um grande ganho para a pauta feminista. O Estado terá que conceder um serviço que pode possibilitar a permanência ou reinserção da mulher no mercado de trabalho, acesso à educação e tempo livre. Todo mundo tem direito também a tempo livre. Por que não?”, conclui. Ela lembra que uma das demandas da população é para que as creches públicas funcionem em horários diferentes, de forma ampliada e em período noturno. 

A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte, de acordo com o STF:

1 - A educação básica em todas as suas fases – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio – constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata.

2 - A educação infantil compreende creche, de 0 a 3 anos, e a pré-escola, de 4 a 5 anos. Sua oferta pelo poder público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo.

3 - O poder público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica.