NUCIDH emite nota técnica sobre Projeto de Lei em Curitiba 09/08/2018 - 14:20

NOTA TÉCNICA  
 
A Defensoria Pública do Estado do Paraná, por meio do Núcleo de Cidadania de Direitos Humanos, vem manifestar sua posição contrária à Proposição de Projeto de Lei Municipal nº 031.00024.2018, e de Substitutivo Geral da Proposição nº 005.00062.2017, trazendo à baila considerações objetivas e técnicas sobre o tema, consoante segue, de acordo com o art. 5º, XIV, da Resolução nº. 07/2015-CSDP. 
 
A referida Proposição visa a apreciação, pela Câmara Municipal de Curitiba, de Projeto de Lei Ordinária, a qual fixaria como infração administrativa o uso de drogas ilícitas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, nos parques nas imediações das instituições de ensino, ou em quaisquer locais de concentração de crianças, adolescentes, jovens, gestantes e idosos, e demais logradouros públicos localizados no Município de Curitiba. 
 
Como sanção à infração, os infratores ficariam sujeitos, sem prejuízo de medidas na esfera penal, às sanções administrativas de comparecer em reuniões de grupos de ajuda mútua ou programa ou curso educativo sobre prevenção ao uso de drogas e/ou participar de programas de combate ao uso de drogas. Prevê que, se o infrator for criança ou adolescente, deverá ser observado o contido na Lei nº 8.069/90. 
 
A Lei nº 11.343/06, chamada Lei de Drogas, prevê, em seu artigo 28, sanções para o uso de drogas. São elas: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. As duas últimas podendo ser aplicadas por período máximo de 5 meses, e, em caso de reincidência, pelo período de 10 meses. A prestação de serviços à comunidade é cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. Em caso de recusa do agente, o juiz poderá submetê-lo a admoestação verbal e multa, esta revertida ao Fundo Nacional Antidrogas. Ainda, há previsão de disponibilização, ao infrator, de estabelecimento de saúde para tratamento especializado. 
 
Vê-se claramente que já há previsão de sanção para o uso de drogas – não só em locais públicos – por lei federal. O uso de drogas constitui crime pela legislação pátria, razão pela qual, em conformidade ao artigo 22, inciso I da Constituição da República, deve ser regulado pela União.  
 
Em verdade, a proposição em comento traz previsão de sanções idênticas, ou ao menos absolutamente similares ao que propõe a Lei nº 11343/2006. 
 
Já havendo regulamentação por lei federal, já havendo a previsão das mesmas sanções em lei federal, e tratando-se de tema inegavelmente de Direito Penal, entendemos que não há competência constitucional atribuída aos Municípios para aplicar sanções no que tange ao uso de drogas proscritas. 
 
Ademais, para aplicação de qualquer tipo de sanção, há a necessidade de devido processo legal, conforme cláusula pétrea inserida no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal. Desta via, a lei municipal teria que prever a criação de procedimentos que apurassem as infrações previstas no projeto de lei. Nesse procedimento haveria de ser proporcionada a ampla defesa e o contraditório, também cláusulas pétreas, previstas no inciso LV do artigo 5º da Carta Magna. 
 
Quando se fala no devido processo legal, como sugere a própria expressão, estamos diante de uma série de princípios e normas legais e constitucionais que deverão ser aplicadas no processo para ao final alcançar um resultado amparado pela Constituição. O Superior Tribunal de Justiça entende como conexos ao devido processo legal o princípio do contraditório e da ampla defesa, no sentido de que esses dois princípios também encontram amparo constitucional no art. 5º LI, CF. 
 
Desta forma, caso a Lei seja aprovada, haverá a necessidade de instauração de processo administrativo para decidir a aplicação da sanção, sob o pálio do contraditório e da ampla defesa, que se subdivide nos direitos à comunicação, produção de provas, apresentação de razões finais e interposição de recursos. 
 
O professor Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que sempre que a providência administrativa a ser tomada houver controvérsia ou especialmente implicar em sanções, torna-se obrigatória a aplicação do art. 5º LV, da Constituição da Republica que “garante aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral” o contraditório e a ampla defesa. 
 
Também haverá a necessidade de o município aplicar recursos no que toca à aplicação material das sanções, como a disponibilização de pessoal especializado no tema, recursos e estrutura para a realização de reuniões de grupos de mútua ajuda e programas de combate ao uso de drogas. Tal destinação de recursos agrava ainda mais a atual situação, encontrada em âmbito mundial, sendo especialmente forte no Brasil, de gastos exacerbados com a “guerra às drogas”. Os recursos previstos para aplicação das sanções poderiam ser aplicados em programas de prevenção ao uso de drogas, nos mesmos parques, praças, imediações de instituições de ensinos, locais com concentração de crianças, adolescentes ou idosos, etc. 
 
No artigo 1º da Proposição, onde se descreve os locais em que haveria maior desaprovação ao consumo de drogas, lista-se a proximidade com segmentos sociais mais sensíveis ao contato com as drogas, tais quais as crianças e adolescentes. Contudo, o referido artigo termina por incluir os “demais logradouros públicos localizados no Município de Curitiba”. Sendo assim, colocase novamente em situação de vulnerabilidade as camadas mais negligenciadas da população, aquelas, por exemplo, em situação de rua e que são dependentes químicos, não somente usuários eventuais. Penalizadas pela falta de oportunidades, pela invisibilidade, pela carência no acesso à saúde e moradia, propõe-se uma nova penalização, sobre ato pelo qual sequer têm controle: a necessidade de saciar seu vício nas ruas. 
 
Entendemos que legislação em tal sentido não ajudaria a combater o problema das drogas verificado no município de Curitiba e em tantos outros do Brasil, da América Latina e do mundo. Isso pois sabe-se que incremento na intensidade das sanções não é suficiente para desestimular os usuários. Tal fato pode ser observado nos países que elevaram a penalização ao uso e venda de drogas em seu patamar máximo, o da pena de morte, e não estancaram o problema. Após o fenômeno do encarceramento em massa em nome do combate às drogas, a tendência mundial é, hoje, de relaxamento nas punições em torno do uso, mas não do comércio, de entorpecentes. Verificou-se que o sancionamento desenfreado apenas agravava a situação de vulnerabilidade de grande parcela dos usuários, o que culminava no crescimento dos problemas de segurança e saúde pública. 
 
Por fim, em rápida pesquisa, logramos êxito em encontrar diversas proposições semelhantes à que ora se comenta. Não foi encontrada, todavia, qualquer uma que tenha tido sucesso em sua promulgação, quanto menos em relação aos resultados que almejava. As cidades de Americana1, Balneário Camboriú2 e Campinas3 já apresentaram projetos de lei em muito semelhantes a esta Proposição. Nenhuma das cidades teve o projeto sancionado. Pelo contrário, as proposições foram alvo de diversas e multidisciplinares críticas4. Os apontamentos residem no fato de que “já existe uma lei federal que prevê a regulamentação”, e desta forma “a maneira de o poder público lidar com a situação do consumo de drogas deve possuir caráter nacional, especialmente quanto à prescrição de medidas para prevenção do uso indevido, atenção reinserção social de usuários e dependentes de drogas”. Também há temor dos efeitos sociais que causariam a nova lei. No campo da psiquiatria, o coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos (Leipsi) da Unicamp, Luís Fernando Tófoli, informou que a avaliação do órgão é que medidas de punição não influenciam as taxas de uso de drogas ilícitas.  

A nota técnica do Núcleo da Cidadania de Direitos Humanos que contou com vasto apoio técnico do Núcleo de Política Criminal e Execução Penal, ambos da Defensoria Pública do Estado do Paraná para confecção deste documento conclui que:

I) a Proposição é inconstitucional por buscar a regulamentação de ato já regulamentado por legislação federal;

II) a Proposição é inconstitucional por buscar legislar, em âmbito municipal, sobre crime e sanção (uso de drogas), matéria atribuída à União pelo art. 5º, LVI da Constituição de 1988;

II) a Proposição apresenta as mesmas sanções, deixando de fora outras, já previstas pelo art. 28 da Lei nº 11.343/2006;

IV) a Proposição é inconstitucional por não prever a criação de processo que garanta os direitos à comunicação, produção de provas, apresentação de razões finais e interposição de recursos para aplicação da sanção. 
 
 
                                                                                                 Cinthia Azevedo Santos

                                                                                                      Defensora Pública  

                                                                      Coordenadora do Núcleo da Cidadania de Direitos Humanos 
 
 
                                                                                                  Wisley Rodrigo dos Santos

                                                                                                        Defensor Público  

                                                                           Auxiliar do Núcleo da Cidadania de Direitos Humanos 
 

Referências: 

1 http://liberal.com.br/cidades/americana/lei-quer-multar-uso-de-droga-em-local-publico-de-americana771271/

https://www.pagina3.com.br/politica/2017/out/25/4/vereadora-propoe-multa-para-quem-for-pego-usandodrogas-em-locais-publicos

3 https://oglobo.globo.com/sociedade/vereadores-de-campinas-aprovam-multa-para-quem-for-flagradousando-drogas-em-locais-publicos-21872980

4 https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/apos-aval-da-camara-projeto-para-multar-usuarios-dedrogas-tem-criticas-de-nucleo-de-psiquiatria-da-unicamp-e-advogados.ghtml

 

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