NOTA TÉCNICA ACERCA DO PL ESTADUAL 303/2017 (DIA
ESTADUAL DE CONSCIENTIZAÇÃO CONTRA O ABORTO)
10/04/2018 - 17:00

A Defensoria Pública do Paraná, por meio do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher – Pro Mulher, vem manifestar sua posição institucional com relação ao Projeto de Lei Estadual do Paraná nº 303/2017, de autoria do Exmo. Deputado Cobra Repórter, que pretende instituir o dia estadual de conscientização contra o aborto, mas que acaba repisando a criminalização do aborto e a contraposição do aborto “ilegal” do“legal”.
O Código Penal criminaliza as condutas de abortamento provocado pela gestante ou com seu consentimento; ou abortamento provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (arts. 124 e 125, do Código Penal). Por outro lado, não se pune o aborto praticado por médico, se não há outro meio de salvar a vida da gestante; ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal (art. 128, do Código Penal). Ainda, na ADPF 54, o Supremo Tribunal Federal decidiu que também não é crime o aborto de feto anencefálico.
O PL 303/17 ao objetivar instituir o dia estadual de conscientização contra o aborto, sob nossa análise, acaba ultrapassando os limites de tão somente criar uma data para reflexão e conscientização sobre a vida do nascituro e sobre os riscos de um aborto para a mulher, adentrando na dicotomia de abortos legais versus ilegais.
Vejamos. No texto do PL, no artigo 1º, parágrafo único, I, por exemplo, menciona-se que o dia de conscientização contra o aborto tem por objetivo a promoção de atividades que permitam sensibilizar a população sobre os direitos do nascituro e as implicações do aborto ilegal. O projeto, contudo, deixa de mencionar a necessidade de conscientização dos agentes de saúde e da população em geral a respeito dos direitos da mulher gestante, inclusive a respeito das hipóteses de aborto permitido.
E na justificativa, que acompanha o PL, há alguns dados sem indicação de fonte1. Além disso, para oportunizar à sociedade paranaense um dia para a orientação sobre a questão, acabou-se mesclando os termos descriminalização com legalização do aborto, ou mesmo incentivo à prática. Menciona-se, por exemplo, que o aborto ilegal mata uma mulher a cada dois dias no Brasil. Que o aborto ilegal em qualquer momento da gestação trata-se de um assassinato em potencial. Que há apenas três casos de aborto legal e que dentre as consequências negativas da legalização do aborto na sociedade inclui-se a banalização de sua prática e até o aumento do número de DST´s.
Assim, ao se pretender criar o dia de conscientização contra o aborto, de defesa do direito à vida dos nascituros e de combate aos abortos clandestinos, que matam mulheres, o projeto de lei pode gerar ofensa aos direitos destas próprias mulheres, ao utilizar-se da ratificação da criminalização de certas condutas. O PL ao ratificar, repisar e focar nessa dicotomia de abortos ilegais versus legais, pode deixar de contribuir para a defesa da vida e da saúde das mulheres.
Entende-se que o PL poderia tratar do tema sem repisar essa criminalização, voltando-se às práticas de saúde pública, orientação sobre direitos da mulher e da vida do nascituro previstos em lei e não mencionar o tratamento penal da questão, objeto de lei federal. De fato, verifica-se que o enfoque do projeto e respectiva justificativa, acaba por marginalizar ainda mais mulheres já vulnerabilizadas. Mulheres que, além das próprias circunstâncias da gravidez, sujeitam-se a condições de saúde precárias, sem ter acesso a seus direitos garantidos em lei, seja por ignorância, seja dificuldades impostas pelo Sistema de Saúde e de Justiça.
À parte as discussões e posicionamentos de ser ou não a favor de um aborto (argumentos variados baseados em religião, ética, moral, costumes, dentre outros), e à parte a discussão sobre descriminalização dos abortos em geral, o que se defende é que o PL não tomasse posicionamento quanto a esta questão e, tampouco, apontasse que descriminalizar seria legalizar ou mesmo incentivar a prática.
A Constituição, notadamente os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde, permite concluir que o Estado não deve se imiscuir nas questões religiosas, morais e éticas, muito menos, por meio do direito penal, que deve ser a ultima ratio. “Estamos nos limites de uma nova era religiosa (...). Só a partir daí nos sentimos forçados a examinar publicamente questões de tamanho alcance cósmico; aprendemos a desfrutar de uma separação das questões religiosas, que deixamos a cargo das convicções individuais, e as questões seculares, que devem ser decididas no terreno da política”.2
Ainda, aproveita-se para lembrar que a mulher tem direito de acesso aos instrumentos para promoção de sua saúde, sem interferências do Estado em seu corpo.
Convém citar trecho do julgamento da ADPF 54: “Inescapável é o confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os interesses de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integram – sejam os que nasceram, sejam os que estejam para nascer – independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. O tema envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. No caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente”.
É por estes motivos que o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública manifesta-se contrário ao PL 303/17 tal como foi justificado, uma vez que entende-se que os textos ratificaram a dicotomia de abortos legais versus ilegais, vulnerabilizando ainda mais as mulheres. Tratou-se a questão do aborto exclusivamente pelo viés penal, sem reforçar as práticas que contribuam para saúde da mulher, além de mesclar os conceitos de descriminalização com incentivo à prática.
Eliana Tavares Paes Lopes
Coordenadora do PROMULHER/DPPR