NOTA ACERCA DO PLS 394/17 (ESTATUTO DA ADOÇÃO) 02/03/2018 - 14:00

A Defensoria Pública do Paraná, por meio do Núcleo da Infância e Juventude da instituição, vem manifestar sua posição contrária ao PLS 394/17, que pretende criar nova lei de regência para a adoção, retirando o instituto da sistemática do ECA.
O ECA não é apenas uma lei de regência; é, antes, sinal da ruptura do País com o tratamento conferido a crianças e adolescentes por décadas, na vigência do Código de Menores. A importância do ECA, e a razão da lei ter se tornando verdadeiro marco normativo, está na virada que proporcionou, deslocando crianças e adolescente da posição de objetos do direito para sujeitos de direito, que deveriam ser compreendidos – e, especialmente, respeitados no processo – em sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
Deste marco resultaram os princípios que regem a proteção a crianças e adolescentes, insculpidos no artigo 100, por sua vez desdobrados em várias regras, como a participação obrigatória de crianças e adolescentes no próprio processo protetivo, bem como a garantia do contraditório em todas as fases do processo.
Tais garantias processuais não são de somenos importância, embora pareçam comezinhas a quem não milita, cotidianamente, na área; ainda hoje, não é raro que Varas judiciais processem os feitos protetivos como meros procedimentos administrativos, sem as garantias acima descritas, que garantem um mínimo de controle sobre processo que, inclusive, tramitam em segredo de justiça.
É importante esclarecer, aqui, do que se trata, na prática. O acolhimento não ocorre, em regra, em razão do puro e simples abandono material, ou seja, da criança que é deixada na rua por seus pais. A maior parte dos acolhimentos ocorre, segundo recentíssima pesquisa feita pelo MPPR¹, em razão de “negligência”, termo genérico que, indica uma ampla gama de violações de direitos por parte das famílias – e, por consequência, indica que a criança, nessas hipóteses, é retirada compulsoriamente do seio familiar.
Tais famílias, em regra, são extremamente vulneráveis, e reproduzem comportamentos que, em época anterior, eram aceitos, e que hoje são julgados inadequados. São famílias que, durante gerações, tiveram pouquíssima assistência do Estado, baixa escolarização e baixo grau de profissionalização. Muito embora a razão do acolhimento, nestes casos, não seja diretamente a falta de recursos materiais (que, aliás, configuraria acolhimento vedado por lei), inegavelmente tal carência encontra-se na raiz de diversas violações que levam a acolhimentos, como higiene e alimentação precárias, evasão escolar, dentre outros.
A sistemática que o ECA instituiu inclui o trabalho em rede para resgatar os vínculos rompidos nessas famílias, inserindo-as no processo protetivo e impondo-lhes uma série de deveres que buscam, ao final, transformar suas rotinas e suas vidas, de modo que lhes seja possível ter a criança ou o adolescente de volta, sob sua proteção. É priorizada, assim a reintegração familiar à destituição (e posterior adoção), com a ampliação de políticas públicas intersetoriais que consigam atender efetivamente a este escopo, a preservação dos vínculos culturais e comunitários, e sob o amplo controle das instituições que atuam na área, como o Poder Judiciário, o Ministério Público e a própria Defensoria Pública.
À parte desta sistemática, o ECA impôs uma série de regras à adoção, de modo a evitar problemas que ocorreram sob a regência da legislação anterior, como, por exemplo, a vedação, como regra, a adoção intuitu personae, ou seja, a adoção fora do cadastro de adotantes, procedimento impessoal que dificulta, e muito, a venda de crianças, por exemplo.
O PLS 394/17, por outro lado, ao criar sistemática paralela à do ECA, rompe com sua base principiológica. No artigo 36 do referido projeto, por exemplo, permite-se à família acolhedora adotar, com prioridade, a criança ou adolescente. Na sistemática do ECA, este serviço público, qual seja, o acolhimento familiar, também tem por escopo a reintegração familiar, o que constitui restrição a eventual alienação parental em relação à família de origem, eis que as famílias acolhedoras não poderão adotar definitivamente as crianças sob sua guarda. A situação instaurada pelo PLS, neste ponto é gravíssima: no limite, as famílias acolhedoras recebem remuneração estatal sem o compromisso de buscar a reintegração, com o estímulo à formação de vínculos definitivos que retira as inibições (antes, as estimula) à alienação em relação à família de origem.
Outro exemplo danoso do rompimento daquela sistemática é a previsão do art.23 c/c art. 168, §4º (que, aliás, já consta do ECA, no artigo 158, §4º, recentemente introduzido pela lei 13.509/17). A previsão em comento é a que dispensa o envio de ofício para a localização de pais “em local incerto ou não sabido”. Ocorre que, no cotidiano judiciário, não é rara a situação da criança ou adolescente acolhido em que os pais têm pouca ou nenhuma informação acerca do acolhimento, e levam semanas para descobrir que: a) há um processo; b) onde está a criança ou adolescente; c) o que podem fazer para que seja possível a reintegração. Ademais, em relação à família extensa, muitas vezes a informação da institucionalização não é repassada à família extensa por vergonha ou incompreensão dos pais.
O Judiciário, assim, não sai “à caça dos parentes” ou pais que nada querem saber de seus filhos: concretamente, o envio de ofícios para a localização já tem seu escopo delimitado pela autoridade judiciária (que irá deferir apenas o que for necessário – e justo), e o trabalho em rede já deve abranger, ainda que em outro município, a família extensa, quando há notícias concretas de sua existência, o que é aferido no caso concreto pela autoridade judiciária. Atribuir eventual demora no processo adotivo a tais diligências é absurdo, e reflete verdadeiro desconhecimento da realidade processual, pois todos estes requerimentos, quando ocorrem, são fundamentados e decididos pela autoridade judiciária, inclusive quanto à sua necessidade e abrangência. Ademais, em regra os recursos não tem efeito suspensivo, nos termos do artigo 199-A, do ECA; deste modo, não são os recursos que geram eventual demora no processo.
Estes são apenas exemplo danosos das modificações trazidas pelo PLS em questão. É de se notar, aliás, que os princípios do artigo 100 do ECA, que garantem efetivo controle do processo pelos próprios infantes, não foram reproduzidos no PLS; tal ausência revela que a verdadeira preocupação do projeto foi alijar os pais e a família natural do processo protetivo, seja acelerando o trâmite com o decote de garantias processuais, seja reduzindo prazos, de modo a impossibilitar o efetivo contraditório.
É por este motivo que a Defensoria Pública é contrária ao PLS 394/17, que não traz qualquer melhoria efetiva ao sistema; antes, traz retrocessos, desconfigurando o trabalho em rede, reduzindo a garantia processual do contraditório e da participação dos infantes no processo que lhes diz respeito, e privilegiando o rompimento de vínculos à sua manutenção.
Marcelo Lucena Diniz
Coordenador do NUDIJ/DPPR
¹ “Cenários e Olhares sobre o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes no estado do Paraná”, a ser disponibilizado no sítio eletrônico do CAOP/MP. Os três principais motivos de acolhimento seriam, num total de 2001 crianças e adolescentes acolhidos, a negligência (593); não informado (281) e abandono (239).