Herança digital: é possível herdar as redes sociais e o patrimônio virtual de uma pessoa falecida? 13/09/2023 - 16:19

No Brasil, ainda não há uma lei que defina o destino dos bens digitais de uma pessoa falecida. A presença cada vez maior deles no dia a dia das pessoas levanta discussões sobre o patrimônio pessoal nos espaços virtuais - a chamada herança digital. Segundo defensores públicos do Estado do Paraná, a falta de uma legislação específica sobre o tema deixa para os tribunais a responsabilidade de decidir sobre controvérsias nessa área, e os entendimentos têm variado bastante. Atualmente, diferentes leis atravessam a questão dos bens digitais, como o Marco Civil da Internet, a Lei de Direitos Autorais e as discussões sobre direitos de personalidade. 

Mas o que é a herança digital? De acordo com o defensor público Matheus Lobo Marinho Noleto, que já atuou nas áreas Cível e de Família e Sucessões, esse termo se refere a todo o patrimônio digital deixado por uma pessoa. Apesar de não haver uma definição exata, Noleto explica que há algumas particularidades que caracterizam a herança digital. "Ela engloba arquivos de texto, áudio, vídeo, imagens, dados pessoais, contas online e outros dados compartilhados digitalmente durante a vida. Esses dados podem possuir valor econômico ou afetivo para os herdeiros", afirma ele.

Outro fator que caracteriza os bens digitais como um todo é a existência deles apenas na forma de dados, ou seja, eles não existem ou não possuem correspondência no mundo físico, como são os casos de imóveis e valores em dinheiro. Essa condição, na avaliação do defensor público, exige um tratamento sucessório específico por meio da lei. No entanto, ainda não há uma distinção legal entre cada tipo de herança.

"No Brasil, os bens físicos são divididos com o cônjuge sobrevivente, dependendo do regime de casamento, e partilhados entre os herdeiros sucessórios e/ou testamentários. No entanto, os bens digitais ainda não possuem regulamentação. A nossa atual legislação se baseia em um momento histórico em que os bens digitais eram inexistentes ou insignificantes para o patrimônio das pessoas. Isso mudou com a evolução das redes sociais e a maior integração de todos os aspectos do dia a dia à internet", analisa Noleto.

O termo herança digital, na opinião do defensor público João Victor Rozatti Longhi, especialista em direito digital, categoriza algo que já faz parte da vida das pessoas mesmo antes da popularização da internet. "Os bens imateriais existem há mais de 200 anos, a partir do início da sociedade industrializada em que valores de consumo começaram a ser atribuídos a desenhos e números, com o consequente registro comercial desses bens. Mas depois da digitalização dos bens, o que houve foi uma necessidade de regulamentação, que ainda é insuficiente", explica Longhi. 

Tema em discussão

A ausência de respaldo legal levou à discussão de diferentes propostas sobre o tema no âmbito do Poder Legislativo. O Projeto de Lei Federal n.° 4099/2012, já arquivado, por exemplo, propôs que o acesso a conteúdos de contas e arquivos digitais deveriam ser garantidos aos herdeiros. Uma legislação sustentada por essa proposta concederia aos sucessores o direito de terem acesso a perfis em redes sociais da pessoa falecida, por exemplo. Entretanto, essa possibilidade esbarra na proteção das informações que pertenciam à pessoa falecida, um ponto sensível do debate acerca da herança digital. 

"Isso poderia configurar uma violação da privacidade e dos direitos de personalidade do indivíduo falecido. Há quem defenda que os bens digitais poderiam ser protegidos e herdados da mesma forma que os direitos autorais, patentes e marcas registradas. No entanto, a herança digital não se confunde com esses direitos", esclarece Noleto. Essa diferenciação motiva parte da doutrina brasileira a defender que contas em redes sociais, por exemplo, não podem ser herdadas após o falecimento por constituírem direitos de personalidade. O artigo 11 do Código Civil Brasileiro estabelece que esse tipo de direito é intransmissível, portanto, não é possível herdar contas de perfis em redes sociais. 

Além da possibilidade de violação de privacidade, Longhi explica que há também uma discussão sobre a participação das próprias plataformas digitais no processo de sucessão. "Os provedores de aplicação poderiam aplicar seus termos de uso, que, em geral, definem que os dados dos perfis pertencem à própria rede social, mesmo após o falecimento do proprietário do perfil", comenta ele. No entanto, não há consenso sobre isso dentro da jurisprudência. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (13.709/2018), conforme Longhi, também se faz presente no debate, uma vez que ela tem reforçado o direito fundamental à proteção de informações pessoais mesmo após a morte.

O defensor público também resgata a Lei de Direitos Autorais (9.610/1998). Para ele, ainda que ela não dê conta de todas as especificidades que comportam os bens digitais, como o direito à imagem, a Lei de Direitos Autorais é uma possibilidade de suporte às decisões judiciais relativas ao tema. "Ela distingue valores morais e valores patrimoniais de autor, define tempo de proteção, direitos dos executores, direitos dos produtores e outros pontos. Isso pode ajudar porque muitas das categorias que são usadas para a circulação dos bens digitais estão presentes dentro dessas delimitações dos direitos autorais", analisa ele. 

Noleto ressalta que a Lei de Direitos Autorais, bem como o Marco Civil da Internet (12.965/2014), auxiliam no debate, mas não dão conta de resolver as especificidades exigidas para uma adequada regulamentação da sucessão dos bens virtuais. O marco responsabiliza as plataformas digitais quanto à circulação de conteúdos ilícitos, mas não se refere aos direitos sucessórios. "Grande parte da herança digital pode ter um elevado valor afetivo para os familiares, e a ausência de regulamentação agrava o sofrimento da perda de um ente querido. É importante que a legislação determine qual a destinação desses dados, inclusive para evitar o seu desvio ou mau uso", conclui ele.