Entrevista com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz 03/03/2023 - 15:25
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti Machado Cruz é conhecido por ser um jurista articulado, de pensamento complexo e para além do senso comum, relator de casos que envolvem decisões emblemáticas para a promoção dos direitos humanos no Brasil e alguém que defende de forma intransigente os direitos individuais e fundamentais. Para quem o define como um ponto fora da curva e o elogia constantemente pela coragem de combater o punitivismo e por rejeitar a figura do Poder Judiciário como justiceiro, o ministro responde que está "apenas cumprindo a Constituição". Certamente, isso não invalida os elogios à sua atuação, mas sua resposta leva a pensar como a discussão sobre o respeito às garantias constitucionais e às normas processuais penais por vezes caminha a passos lentos.
É dele a relatoria de casos cujas decisões impactam fortemente o trabalho da Defensoria, como a impossibilidade de que o reconhecimento por foto seja suficiente para condenar uma pessoa; que permite que condenados pobres possam ser isentos de pagar a pena de multa; e que policiais só podem entrar em residências sem mandado judicial se registrarem em áudio ou vídeo a autorização dos moradores. Não por acaso, foi o convidado de honra para encerrar o Curso de Formação dos novos 40 defensores e defensoras públicas do Paraná que tomaram posse no dia 23 de janeiro após aprovação no IV Concurso promovido para a carreira pela instituição.
O ministro também é admirado por incorporar em suas decisões as perspectivas de gênero e racial, e por citar referências da música e da literatura em suas argumentações, além de reforçar a importância de um Direito com linguagem mais aberta e plural, que se abre e respeita a contribuição de outros saberes. Durante sua palestra, além de tratar de temas áridos e complexos, recomendou uma série com protagonista mulher, e comentou sobre a importância de um olhar multidisciplinar e aberto para as visões múltiplas da sociedade, como é o caso do julgamento sobre o perfilamento racial em abordagens policiais, que atualmente está em discussão no Supremo Tribunal Federal.
Mineiro de Juiz de Fora, Rogério Schietti Machado Cruz é formado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília, com mestrado e doutorado em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal e, em 2013, tornou-se ministro do STJ. Entusiasta da Defensoria Pública, lembrou de sua atuação junto à população quando o Distrito Federal ainda não contava com a instituição e integrantes do Ministério Público desempenhavam a função hoje exercida por defensores e defensoras. “Fiz atendimentos à população durante esse período, e sei a importância do trabalho da instituição, que é quem está em contato direto com o drama humano, com as famílias das pessoas. É um trabalho essencial”.
Antes da palestra, o ministro conversou com a Assessoria de Comunicação. Confira abaixo a entrevista:
Assessoria de Comunicação: O senhor foi relator de algumas das decisões mais emblemáticas do Superior Tribunal de Justiça para a promoção e defesa dos direitos humanos no Brasil nos últimos anos, o que certamente impacta positivamente o trabalho da Defensoria Pública. Para além da leitura atenta dos argumentos da Defensoria nos autos e o contato que o senhor trava, mesmo que rapidamente, com defensores(as) nos julgamentos, qual é a visão que o senhor possui a respeito do trabalho da instituição?
Ministro Rogério Schietti Machado Cruz: Posso dizer que as defensorias públicas estaduais têm sido responsáveis por uma boa parte das mudanças da nossa jurisprudência, porque, como o Judiciário precisa ser provocado, as nossas decisões partem de petições que são feitas ou por advogados ou por defensores públicos. Eu não me recordo exatamente o percentual, mas praticamente metade dos Habeas Corpus, dos recursos de Habeas Corpus e recursos especiais que são manejados perante o Superior Tribunal de Justiça provem das Defensorias Públicas.
E o mesmo ocorre em relação às questões relativas à Execução Penal – regime de pena, progressão de regime, benefícios da execução penal. Geralmente é o defensor ou defensora pública quem tem condições, melhor do que qualquer outro profissional, de nos trazer informações ou detalhes sobre esses casos, que para nós ficam distantes. São processos que retratam situações que, normalmente, pela aplicação da letra fria do Código Penal ou da Lei de Execução Penal, acabam passando despercebidas.
O trabalho da Defensoria Pública é muito importante na área criminal como, por exemplo, na temática de tráfico de entorpecentes, que é um crime que gera muito estigma, muito preconceito. Quando se fala em “traficante”, o que nos parece é que se trata do pior criminoso do mundo. Obviamente, muitas vezes é alguém que está realmente praticando crime, e vai ser punido por isso, mas essa pessoa não deixa de ser titular de direitos que costumam ser, muitas vezes, suprimidos por conta de uma visão do próprio Poder Judiciário ainda fincada nesses estigmas sociais. A Defensoria nos mostra o drama humano por trás daquele crime.
Nós já tivemos casos, por exemplo, de fixação de um regime de pena unicamente pelo título do crime, por ser “crime de tráfico”, pois há a ideia de que todo crime de tráfico, por ser um crime equiparado a hediondo, precisa resultar na imposição do regime fechado. Isso ocorre antes da sentença, no que diz respeito à própria prisão preventiva, que acaba sendo naturalizada como uma decorrência imediata da prática de um crime como esse.
Há, portanto, muito estigma ao redor dessa conduta, dessa figura, e nesse sentido a Defensoria Pública revela a necessidade de voltarmos nossos olhos para uma questão que até então era ou desconhecida ou mal tratada. O trabalho da Defensoria Pública é, portanto, essencial - são de imenso valor as discussões que os defensores e defensoras trazem para o STJ.
Assessoria de Comunicação: Percebe-se, pelas suas relatorias e também por entrevistas, que o senhor se define como um legalista, um garantista, e afirma que é preciso muitas vezes adotar uma posição contramajoritária, o que vai de encontro a uma visão ainda muito punitivista da sociedade. Como é ser um ministro de uma alta corte e se destacar por defender ideias que por vezes são extremamente criticadas até mesmo por agentes e autoridades de Estado?
Rogério Schietti Machado Cruz: Isso é algo que eu sempre enfrentei, desde quando era do Ministério Público, e desde aquela época eu já tinha essa percepção. E, na verdade, eu acho que tudo passa pela compreensão dos fins de um processo penal. Eu acho que a sociedade pode até ser mais rigorosa na exigência de punição das pessoas que cometem crimes, mas não tem como o processo penal não ser extremamente fiel à observância dos princípios e das garantias constitucionais, porque é ele que dita a racionalidade do sistema.
Você pode ter, por exemplo, um crime punido com uma pena muito alta, mas é absolutamente imprescindível que o autor desse crime tenha, durante o processo, todas as suas garantias asseguradas para que, ao final, a sua condenação seja legitimada não só por uma questão de racionalidade, mas também por uma estrita observância dessas normas constitucionais e legais. E isso incomoda porque é como se os operadores do Direito e os profissionais do Direito – nesse caso, especialmente os juízes e juízas – estivessem protegendo a pessoa do criminoso e agindo contra a sociedade. E, na verdade, o que nós estamos fazendo é expressar o que é o Estado.
O Estado não pode se nivelar a quem comete um crime, não pode ser um criminoso e violar as regras que ele próprio criou para a proteção de todos, inclusive e especialmente daqueles que violam a lei. Porque é muito fácil observar a lei com pessoas “boas”, tratar bem os vistos como “bons”. Justiça é justamente você ser capaz de, diante de uma situação de alguém que cometeu um crime bárbaro, não se deixar levar por essa irracionalidade punitiva que caracteriza os modelos antigos de persecução penal e dizer ‘olha, aqui eu sou agente do Estado e, portanto, eu não posso agir de outra forma que não cumprir o que determina a lei’. E isso é ser garantista, nada mais do que isso. Não é proteger bandido, não é desconsiderar a vítima. Inclusive, eu acho que a própria vítima também deve ter os seus direitos. Mas quando existe um processo penal, o objeto da persecução ou o personagem principal deste processo é o acusado.
E o agente público deve agir assim não por ser bondoso; é simplesmente por ser fiel ao compromisso de um agente público que verbaliza e densifica as normas constitucionais que, bem ou mal, são aquelas que estão ali definidas pelo próprio povo. Agora, é claro que a sociedade, de modo geral, tem um pensamento muito contrário a essa lógica. As pessoas querem – quando se praticam crimes, especialmente crimes mais graves – as piores penas possíveis, e, mesmo quando a pessoa cumpre uma pena e volta ao convívio social, ela continua sendo vítima de todo tipo de perseguição e de desprezo. Isso precisa mudar. É preciso que as pessoas entendam que a lei deve ser cumprida inclusive na punição, na medida certa, na proporção certa, nos limites da lei.
Assessoria de Comunicação: O senhor frequentemente cita personalidades e teóricos que não são da área do Direito para embasar seus argumentos, já tendo abordado conceitos como racismo estrutural e também a desigualdade de gênero. Qual é a importância de divulgar esses saberes em suas decisões? E como é a sua rotina de leitura e de consumo de produtos culturais?
Rogério Schietti Machado Cruz: Depois que entrei no STJ, a minha vida mudou muito. Hoje eu tenho o tempo muito limitado, então, eu tento não perder essa conexão entre o Direito e outras fontes, inclusive as artes, na medida do possível. Claro, ainda são poucos os votos em que eu faço isso. São naqueles votos em que eu acho importante fazer essa conexão, até para sensibilizar mais as pessoas. Mas acho que as artes são aquilo que transforma a vida em algo mais agradável. No Direito Penal, que é uma área da convivência humana que traduz as piores experiências para os personagens principais – vítimas, acusados, familiares –, há muita dor envolvida, muito sofrimento, então, é importante a gente tentar tornar isso um pouco mais leve.
E eu também tenho uma preocupação com a linguagem, porque o Direito tem uma linguagem hermética e pouco compreensível para o povo em geral. As pessoas não leem muito, também. Então, as ementas precisam ter uma linguagem mais facilmente compreendida pela população. Quando a gente conversa na mídia, vai dar entrevista, e mesmo nos julgamentos, a gente acaba muitas vezes empolando e fazendo aquele discurso muito retórico, e eu acho que existe um lugar para isso, que é a academia. Na atuação prática do profissional do Direito, especialmente o juiz, ele deve se preocupar muito com a inteligibilidade das suas falas e textos, e isso pode ser feito com o uso desses mecanismos (literatura e arte).
Mas isso, infelizmente, eu faço muito pouco e gostaria de fazer mais. É em um caso ou outro em que a gente procura colocar ali um trechinho de uma música, uma poesia, uma citação literária. E abrir espaço para outras ciências: Psicologia, Sociologia, História... Isso enriquece o Direito e torna o nosso discurso um pouco mais palatável.
Assessoria de Comunicação: Por fim, fica aberto o espaço caso o senhor queira transmitir alguma mensagem para integrantes da Defensoria Pública do Paraná e da Defensoria brasileira como um todo. Estamos terminando um curso de formação para 40 novos(as) defensores(as), e seria muito interessante ouvir uma mensagem do senhor a respeito da importância do trabalho que eles e elas irão desempenhar, e da instituição como um todo.
Rogério Schietti Machado Cruz: Eu tenho falado muito para a Defensoria Pública dos estados, pois já palestrei em vários estados, e sempre faço questão de dizer que eu comecei minha carreira pública como defensor público. Quando ingressei no Ministério Público, eu atuava como defensor público porque não havia Defensoria Pública no Distrito Federal. Eu fui estagiário do Ministério Público e, quando passei no concurso do Ministério Público, fiquei quase dois anos atuando como defensor público e atendendo à população.
Então, eu valorizo muito essa profissão, esse múnus público que é do mesmo nível de importância que qualquer outro, porque são tais profissionais, como eu disse no início da nossa conversa, que nos trazem a nós, julgadores, os dramas humanos, os temas que incomodam, que geram reflexão e novos olhares.
Agora, no Supremo Tribunal Federal, está se discutindo a questão do perfilamento racial nas abordagens policiais. A Defensoria Pública foi protagonista ao trazer esse tema ao debate, que é extremamente importante.
A Defensoria Pública, infelizmente, ainda não tem o reconhecimento que merece, porque é uma instituição relativamente nova. Claro que defensores públicos sempre existiram, a maior figura talvez tenha sido, desde o século XIX, Luiz Gama. Mas como instituição, como corporação, inclusive com poder de representatividade, é algo mais recente, então, demora um pouquinho para, digamos, ela ocupar os mesmos espaços que tem direito de ocupar em relação às outras categorias, outras corporações, outras instituições.
Portanto, é muito importante que ela cresça institucionalmente, que o número de defensores e defensoras seja cada vez maior, que a Defensoria ocupe esses espaços de poder e que vocalize realmente não apenas os direitos subjetivos daqueles que são assistidos por ela, mas também vocalize questões maiores, questões que envolvem a população inteira, como o exemplo da questão racial.