Devemos defender a liberdade de expressão, não a de intolerância. 16/02/2022 - 14:50

Nesta última semana, o discurso de apologia à criação de um partido nazista feito por um apresentador de um dos podcasts mais ouvidos no Brasil – que, em 2021, contou com 28 milhões de ouvintes recorrentes no ano –, e um gesto de saudação nazista realizado por um comentarista durante a transmissão ao vivo de um programa de rádio-TV reabriram algumas discussões antigas no campo do Direito: quais são os contornos da Liberdade de Expressão e de Organização Partidária? O que elas abrangem? O que elas não abrangem? Devemos tolerar todo e qualquer tipo de discurso ou todo e qualquer tipo de partido político?
No Brasil, algumas dessas questões já foram analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive de modo específico em relação à apologia ao Nazismo, em 2003.
Na ocasião, há quase 20 anos, a Corte Constitucional brasileira entendeu que a garantia da liberdade de expressão não é “absoluta”, não abarcando um hipotético direito à manifestação de discursos de ódio (hate speeches), já que estes comprometem a própria existência da democracia. Logo, a liberdade de expressão, em nosso país, “não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral, que implicam ilicitude penal” (STF, HC 82.424-2), tal como, aparentemente, foram as manifestações realizadas nessa semana.
No mesmo sentido, além da Lei brasileira, diversos tratados internacionais de Direitos Humanos também estabelecem que o direito à liberdade de expressão não deve ser tido como absoluto, devendo, portanto, essa garantia ser limitada, a fim de preservar outros direitos fundamentais.
O Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, por exemplo, afirma expressamente que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.” (art. 13.5). No mesmo sentido, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil também é signatário, pontua que “será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência” (art. 20.2). Proscreve-se, portanto, a “liberdade de ser intolerante”.
Especificamente sobre a liberdade de organização partidária, nossa Constituição é clara ao reconhecer que esta liberdade encontra limites e, entre outros, não serão toleradas agremiações que representem ameaça ao “regime democrático” ou aos “direitos fundamentais da pessoa humana” (art. 17).
Outros países adotam a mesma postura. O Estado Alemão, através de sua Corte Constitucional, entendeu que o Partido Socialista do Reich, agremiação que se apresentara como sucessora do antigo Partido Nazista, colapsado no pós-Guerra, deveria ter suas atividades encerradas após um discurso antissemita de um dos seus membros ao Bundestag (o Parlamento Alemão) nos anos 1950. Entendeu-se, a partir de tal manifestação, que o partido não possuía um mínimo compromisso com a temática de Direitos Humanos ou com o sistema multipartidário, e, assim, representava uma ameaça à “ordem livre e democrática” devendo-se ser declarado “inconstitucional” com base no art. 21.1 da Lei Fundamental do país (BVerfG 2, 1).
Em outro curioso caso, a mesma Corte Constitucional assentou o entendimento de que determinando jovem não poderia ser admitido nos estágios preparatórios para se tornar um futuro magistrado posto que, em razão de seus posicionamentos políticos ainda na época de estudante de Direito, deveria ser visto como um “extremista” e carente de uma necessária “fidelidade constitucional” para se tornar juiz. Com isso, a Corte entendeu que ele não seria dotado das aptidões mínimas para se tornar um servidor público aos termos do art. 33, II da Lei Fundamental (BVerfGE 39, 334).
Assim, tanto a Corte Constitucional brasileira quanto a alemã reproduzem o Paradoxo da Tolerância do filósofo Karl Popper. Segundo este, a tolerância ilimitada colocaria em risco a própria tolerância. Afinal, ao se dar abertura aos intolerantes, corre-se o risco de que os próprios tolerantes sucumbam já que, pela linha de argumento dos intolerantes, não se admite a convivência com qualquer indivíduo que possa ser entendido como diferente ou adversário de suas ideias.
Não custa lembrar que o Partido Nazista se fundou, em sua história, na defesa de uma superioridade racial falsa e que pregava a eliminação de uma série de grupos minoritários tidos como indesejáveis. Na Alemanha, essa corrente política levou à perseguição e ao extermínio de milhões de pessoas durante o regime nazista e, por isso, ela não pode ser aceita.
Logo, fazer apologia a esse regime não se harmoniza com os preceitos constitucionais da República Federativa do Brasil ou de qualquer outro Estado Democrático de Direito, não encontrando respaldo na garantia da liberdade de expressão ou de associação partidária, que não se têm como absolutas exatamente em razão desse Paradoxo da Tolerância.
Devemos aprender sobre os erros da história, para não os repetir. E não devemos tolerar a intolerância.
Para saber mais, a Escola da Defensoria Pública do Paraná (EDEPAR) e o Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná (NUCIDH) recomendam a visitação ao Museu do Holocausto em Curitiba/PR (Rua Cel. Agostinho Macedo, 248 - Bom Retiro, Curitiba - PR, 80520-100; agendamentos pelo site www.museudoholocausto.org.br), bem como a leitura da obra “Maus” de Art Spiegelman. Neste livro, o autor, através de quadrinhos, expõe a experiência de seu pai, um judeu polonês, durante o Holocausto.
Curitiba, 15 de fevereiro de 2022
Defensoria Pública do Estado do Paraná
Bruno de Almeida Passadore.
Doutorando em Teoria do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e mestre pela mesma instituição. Diretor da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná.
Giovanni Diniz Machado da Silva.
Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Antropologia Cultural pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito pela UFPR e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba. Assessor da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná.
Antonio Vitor Barbosa de Almeida.
Defensor Público Coordenador do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos – NUCIDH.
Vitória Néris da Silva.
Pós-graduanda em Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Estagiária de Pós-graduação da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná.
Angelita de Oliveira Amadeu Quadros.
Pós-graduanda em Análise Criminal pela Faculdade Unina, Especialista em políticas Públicas pela Faculdade Unina e Bacharela em Direito pelo Centro Universitário OPET- Uniopet. Estagiária de Pós Graduação na Escola de Defensoria Pública do Estado do Paraná-EDEPAR.
Apoio: Museu do Holocausto Curitiba | BR