Criança como sujeito de direitos: uma conquista que ainda precisa avançar 17/10/2022 - 13:48
Hoje, se perguntarmos às pessoas quais são os direitos das crianças, muitas responderão prontamente que elas têm direito à educação, ao lazer, a serem protegidas de violência física e psicológica, entre outros. Mas essa naturalidade com que encaramos os direitos das crianças é uma construção histórica recente. Nem sempre a criança foi vista desse jeito...
Até o início da década de 1990, no Brasil, estava em vigor a Lei 6.697/1979 ou “Código de Menores” – responsável por disseminar o termo “menor” ou “de menor” (sic). O Código encarava a criança e os(as) adolescentes como objetos de intervenção do Estado e dos pais, garantindo mínima autonomia a elas. Tratava-se de uma visão adultocêntrica, em que o adulto tinha sempre a última palavra na hora de dizer o que era melhor para essa criança.
A mudança surgiu com a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990. Neste mesmo ano, no Brasil, o Código de Menores havia sido revogado e substituído pela Lei 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente ou, simplesmente, ECA. A partir daí, a criança passa a ser um sujeito de direitos e precisa ser ouvida e respeitada em suas decisões.
“No Brasil, a partir da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, passou a viger a doutrina da proteção integral, momento em que a criança e o(a) adolescente foram alçados a sujeitos de direitos. Ou seja, as próprias crianças e adolescentes estão aptos a reclamarem seus direitos. A própria nomenclatura de ‘Estatuto’ visou a reforçar o direito da criança e do adolescente, já que a nomenclatura ‘Código’ possui um viés de dever, enquanto que Estatuto possui um viés de direito”, explica o defensor público que atua na área da Infância e Juventude em Foz do Iguaçu, Vinicius Santos de Santana.
Implicação na área do Direito
A partir do ECA, diversas áreas precisaram se adaptar para dar mais autonomia à criança, e com o Direito não foi diferente. Hoje, a criança deve ser ouvida em diversos assuntos, desde a escolha sobre a sua própria crença, garantindo a ela liberdade religiosa, até nos casos de gravidez antes dos 14 anos, tendo ela o direito de se manifestar por si própria sobre a realização ou não do aborto (já que manter relação sexual com menor de 14 anos é crime, ou seja, é estupro, e a mulher ou menina que engravidar de um estupro pode realizar o chamado aborto legal), e na escolha sobre com quem ficar em caso de separação dos pais.
Um dos avanços mais recentes na área do Direito foi a aprovação da Lei 13.431/2017, que prevê a escuta especializada e o depoimento especial de crianças e adolescentes, o que garantiu que estes pudessem ser ouvidos de forma humanizada em temas sensíveis. De acordo com o defensor público, a fala da criança precisa ser conduzida por quem está fazendo as perguntas de modo a não gerar distorções. A criança deve ser questionada com perguntas abertas, para que possa dar a resposta que melhor lhe convier. “Conduzir questionamentos fechados, sem margem para outras respostas abertas, impede que a criança seja efetivamente ouvida; na verdade, trata-se apenas de oitiva meramente formal, somente para se dizer que se cumpriu a lei. Assim, qualquer condução equivocada do depoimento deve ser considerada violência institucional, por não ter garantido o direito da criança e do adolescente”.
A Lei 13.431/2017 possibilita que as crianças e adolescentes possam ser ouvidos de forma adequada em diversos assuntos, até mesmo naqueles que ainda são sensíveis ou considerados tabus. Alguns exemplos são estes:
Aborto
Em relação ao aborto, que não é considerado crime em caso de gravidez decorrente de estupro (e manter relações sexuais com pessoas com menos de 14 anos sempre é considerado estupro), a criança tem o direito de ser ouvida em relação ao procedimento.
A assessora do Núcleo da Infância e Juventude (NUDIJ) Giulia Benatti explica que o Código Civil dispõe que os menores de 16 anos são absolutamente incapazes e devem ser representados(as) por seus pais ou responsáveis, enquanto que adolescentes de 16 a 18 anos incompletos são relativamente incapazes e devem ser assistidos por seus pais ou responsáveis. Por essa interpretação, a criança estaria submetida à decisão dos pais ou responsáveis até os 16 anos, mas não é mais esse o olhar da Justiça diante destes casos.
“Com a adoção da doutrina da proteção integral pela Constituição de 1988 e pelo ECA, crianças e adolescentes não só passaram a ser sujeitos de direito como receberam prioridade absoluta no atendimento de seus interesses, de modo que não devem ser tratados como mero objeto de vontade dos pais ou da intervenção estatal. Assim, sempre que a vítima, seja criança ou adolescente, tiver condições de expressar sua vontade, essa deverá ser considerada prioritariamente”.
Religião
Se de acordo com o artigo 3º do ECA a criança e o(a) adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, e se, de acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, a liberdade religiosa é considerada, justamente, um direito fundamental, a lei assegura a ela a liberdade de crença e culto religioso.
Porém, ainda de acordo com a assessora do NUDIJ, a efetividade desse direito depende da orientação por parte da família, que sempre deve se nortear pela proteção integral da criança. “Isso significa que, em caso de eventual conflito religioso entre a criança ou o adolescente e seus respectivos pais ou responsáveis, a autonomia, ainda que em formação, dela(e) deve ser respeitada”. No entanto, a situação muda caso a crença/culto coloque em risco a integridade psicofísica desta criança ou adolescente. Nessa hora, os pais ou responsáveis podem e devem interferir.
Guarda
Também é direito da criança ser ouvida em caso de separação dos pais. Embora a Justiça costume conceder a guarda àquele(a) que reúne as melhores condições para cuidar dessa criança, explica a assessora, caso não haja consenso entre os pais sobre essa questão, o Judiciário deverá ouvir, sempre que possível, junto à equipe multiprofissional, a criança ou o adolescente, e levar sua vontade em consideração, orientando sua decisão a partir do melhor interesse da criança.
“É de suma importância que a criança e o(a) adolescente sejam ouvidos em casos de divórcio. O laço de afetividade e afinidade deve ser aferido com a escuta da criança. Ignorar tal situação pode ocasionar convívio com estresse tóxico, o que será danoso ao desenvolvimento físico e mental dessa criança”, complementa o defensor público Vinicius Santana.
É preciso avançar
Para a psicóloga da DPE-PR Lethicia Gaidarji Silva, embora a criança já seja considerada como sujeito de direitos na legislação, na prática ainda se observa um silenciamento das vozes infantis no contexto jurídico. “A proteção das crianças no âmbito judicial, especialmente no que se refere aos procedimentos através dos quais elas podem ser ouvidas, tem sido amplamente discutida nos últimos anos. Essas discussões possibilitaram avanços para a participação de crianças no contexto jurídico, contudo, ainda há contradições entre os textos legais e as práticas cotidianas”, avalia.
O defensor público também reitera a importância de se ouvir a criança. “A oitiva da criança e do adolescente reforça a sua condição de pessoa humana, que deixou de ser um mero objeto para tornar-se verdadeiro cidadão e cidadã. Ignorar a opinião de uma criança ou adolescente é retroceder à doutrina da situação irregular, que considerava-os mero objeto do Direito, como se fossem um animal que possui proteção legal, mas não pode expressar opinião”, explica. “Passados mais de 30 anos da vigência da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se pode mais aceitar que a criança e o(a) adolescente não tenham direito a voz, que sejam impedidos de dizer o que entendem ser melhor para si”, conclui Santana.
Porém, a psicóloga enfatiza que, além de dar voz às crianças nos processos judiciais com o devido cuidado e respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento, são necessárias políticas públicas estruturadas e efetivas que garantam verdadeira cidadania e autonomia às pessoas mais jovens de nossa sociedade. “Construir e fortalecer as políticas públicas – garantir acesso à saúde, educação, assistência social, cultura e lazer, por exemplo, às crianças e suas famílias – é uma das formas de se aproximar do que determinam as leis”.
“A proteção integral à infância depende da efetivação e articulação das políticas públicas, e as equipes técnicas da Defensoria Pública, formadas por profissionais de diversas áreas, como Psicologia e Serviço Social, atuam nessa perspectiva, a fim de encontrar soluções processuais que considerem a história de vida e o contexto social destas crianças”, conclui.
Colaboraram para essa matéria os defensores públicos Bruno Müller Silva e Fernando Redede Rodrigues e a psicóloga Luana Oshiyama Barros.