Conheça o trabalho da Defensoria do Paraná na defesa de pessoas indígenas privadas de liberdade 27/04/2023 - 17:15
Em maio de 2020, a Justiça paranaense determinou a monitoração eletrônica de um homem indígena preso preventivamente já há um ano e seis meses. Na maior parte desse tempo, ele ficou detido na Casa de Custódia de Curitiba. Ao retomar sua vida na Terra Indígena Cerco Grande, no município litorâneo de Guaraqueçaba, o sistema de monitoração eletrônica acusou várias infrações supostamente cometidas pelo homem.
O problema, no entanto, não estava no comportamento do indígena, mas no baixo fornecimento de energia elétrica na localidade, que causava quedas de luz e do sinal de celular, e as “infrações” foram desconsideradas. Para esclarecer a questão e evitar que ele fosse punido pelo suposto descumprimento das regras de monitoramento, a Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) entrou em cena e realizou um pedido de revogação da monitoração, que foi aceito ainda naquele ano. Além da falta de energia, outro problema enfrentado pelo homem era o fato de que o modo de vida de sua comunidade exigia cuidados com roças e participação em rituais em templos religiosos que demandavam deslocamentos de uma distância maior do que 100 metros, perímetro máximo de afastamento de casa permitido pelo Poder Judiciário.
Logo, a Defensoria, após análise do caso, explicou essa particularidade e pediu, com sucesso, que a tornozeleira fosse retirada. O pedido em questão foi realizado pela Defensoria com fundamento na Resolução Nº 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê que a penalização de indígenas "deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada". Na prática, a resolução reforça a necessidade de que indígenas não sejam submetidos às mesmas condições de aprisionamento da população em geral.
Esse trabalho, no âmbito da instituição, é desenvolvido por um projeto que ganhou corpo nos últimos quatro anos na instituição: o “Central de Liberdades”, coordenado pelo Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP), que atende casos de pessoas indígenas acusadas ou já condenadas por crimes.
População vulnerável
Segundo a defensora pública Andreza Lima de Menezes, coordenadora do NUPEP, a atuação da Central de Liberdades busca fazer com que a proteção legal destinada aos povos indígenas seja respeitada. "É uma população vulnerável e, dentro do sistema prisional, essa vulnerabilidade é acentuada pelas condições do cárcere e pela total falta de respeito à identidade dessas pessoas", explicou Menezes. Neste sentido, as condições a que eles devem ser submetidos durante o cumprimento da pena devem ser diferenciadas.
Segundo a defensora, é comum que processos de pessoas indígenas sejam incompletos e dificultem a identificação da comunidade a que o(a) envolvido (a) pertence. Dos casos em que foi possível obter essa informação, a maioria dos indígenas pertencia à etnia Kaingang; em seguida, vem a etnia Guarani.
"As abordagens feitas a pessoas indígenas, e a forma como são encaminhadas às delegacias, muitas vezes, deixam de lado a história e a cultura que a pessoa tem. Isso intensifica as dificuldades que indígenas sofrem quando estão encarcerados", analisa Florencio Rékág Fernandes, indígena Kaingang, doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e que atuou como intérprete em um caso de uma mulher indígena atendida pela Defensoria.
O intérprete diz que tem cobrado autoridades sobre a importância de se realizar uma análise prévia do caso e identificar a etnia da pessoa indígena antes de se efetuar a sua prisão, justamente para garantir o tratamento adequado durante o andamento da investigação e do processo.
Rede de comunicação
Para que a Central de Liberdades chegue até os(as) indígenas presos(as), a equipe da DPE-PR mantém contato com lideranças das aldeias e autoridades que formam uma rede de comunicação específica. A maioria dos casos, explica a assessora jurídica do NUPEP Isabela Tonon Furtado, chega por meio da comunicação direta entre a coordenação do Núcleo e as lideranças. “Mas isso também ocorre por meio da comunicação de juízes, pelassedes da Defensoria e mesmo quando as próprias pessoas indígenas enviam os casos para a Central", explica. Mesmo quando não é possível realizar o pedido de semiliberdade, a equipe faz o acompanhamento do caso para que o(a) usuário(a) não fique desassistido(a), conforme a assessora jurídica.
Os casos de semiliberdade atendidos pelo projeto ocorreram nas comarcas de Guarapuava, Foz do Iguaçu, Curitiba, Laranjeiras do Sul e Manoel Ribas. A rede que liga as comunidades originárias ao trabalho da Defensoria permite uma atuação mais ativa de indígenas na defesa de outros(as) indígenas - fator relevante para a efetivação da justiça, segundo o intérprete Kaingang.
"Nós conhecemos muito mais a nossa própria cultura. A nossa participação nos processos permite ouvir mais e entender melhor a situação da pessoa indígena acusada. Quando ela chega ao cárcere, há toda uma vida anterior, que não pode ser ignorada. Essa é uma luta dos povos indígenas, que visa a uma melhor defesa de todos", conta Fernandes.
Atendimento da Central de Liberdades
Além dos indígenas que possuem direito à semiliberdade, o projeto também atende idosos(as) e pessoas com doenças graves, mulheres gestantes, mães e responsáveis de crianças ou pessoas com deficiências, população carcerária LGBTQIA+, migrantes, pessoas com deficiência ou que cumprem medida cautelar de internação provisória no Complexo Médico Penal e pessoas com sofrimento mental.
Em todo o estado, a Central também fornece apoio às equipes da Execução Penal e Criminal. De agosto de 2019 a fevereiro de 2023, foram realizadas mais de 9 mil análises de casos no total, entre ações penais e processos de execução de pena.