Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com José Nildo Lins dos Santos, assessor jurídico da DPE-PR em Maringá 24/11/2023 - 09:57

Nascido e criado em Colorado, município no norte do estado, pai do João Vitor, de 19 anos, e do Pedro Henrique, de 16, esposo da Ozana, filho de um alagoano e de uma pernambucana que fizeram de tudo para criar e educar sete filhos. Esse é José Nildo Lins dos Santos, assessor jurídico da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) desde 2014. 

Nildo, como é conhecido pelos colegas, conversou com a Assessoria de Comunicação (ASCOM) no dia do seu aniversário de 51 anos - que é também o dia do aniversário de seu primeiro filho - e pôde fazer uma retrospectiva de sua trajetória, que começa na zona rural, passa pelo coração da maior cidade do país e chega a Presidente Prudente (SP) e Maringá. 

Percurso que não foi fácil. O assessor precisou lidar com os obstáculos da desigualdade social e as dificuldades nos cuidados de seu primeiro filho, portador do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo, Nildo já trabalhou como metalúrgico e, por 13 anos, como agente de segurança no metrô da capital paulista. Interessado pela luta social desde a juventude, participou de grandes movimentos sindicais daquela região, bagagem que trouxe para a Associação dos Servidores e Servidoras da Defensoria Pública do Paraná (Assedepar), da qual foi vice-presidente entre os anos de 2017 a 2022. 

Toda essa experiência de vida você confere agora, na entrevista do mês da série “Com a Palavra, a Defensoria”. 

 

Imagem que mostra o servidor José Nildo em três momentos: em sua mesa na sede da DPE-PR de Maringá atendendo uma mulher, em frente a uma janela, sorrindo, e novamente em sua mesa, lendo documentos nas telas do computador.

 

Comece contando como foi a sua infância e adolescência. Onde você nasceu e cresceu e como foram os seus primeiros anos de vida?

Eu nasci em Colorado, sou paranaense, e a minha família vivia no sítio. Meu pai era trabalhador rural, essas pessoas que trabalham com porcentagem, colhendo café. Naquela época era muito comum, tinha muito café. Eu tenho cinco irmãs e um irmão, e tive uma irmãzinha que faleceu com 30 dias, que era gêmea da mais nova. Meu pai sustentava todo mundo colhendo café e minha mãe ajudava. Os filhos, à medida que iam crescendo, iam integrando esse serviço também, inclusive. Mas logo nós mudamos para a cidade, meu pai parou de trabalhar com café, pois foi mudando a característica da região. E eu, com 11 anos, comecei a trabalhar. Saía para vender sorvete e peixe na cidade e depois fui consertar sapato em uma sapataria. Em 1985, minha mãe arrumou um trabalho para mim numa gráfica. Eu entrei nessa gráfica com 12 anos e trabalhei até os 18, inclusive fui registrado com 15 anos, porque naquela época podia, era antes da Constituição de 1988. 

Quando eu terminei o ensino médio, em 1990, em Colorado, estudando em escola pública sempre, eu queria continuar a estudar, mas a gente não tinha dinheiro, era muito difícil. A cidade é pequena, não tinha nenhum curso superior e as primeiras incursões que eu fiz tentando fazer faculdade não deram certo. Eu fiz vestibulares em universidades públicas distantes, lugares que eu nem conhecia e não sabia como me manteria nesses locais. Com 18 anos eu prestei vestibular para Engenharia Civil, acho que na Universidade Estadual de Ponta Grossa, mas não entrei. Mas como eu já trabalhava, dei sequência na minha carreira profissional e eu acabei me mudando para São Paulo.

 

E como foi essa infância em Colorado? Você só morou em Colorado antes de mudar para outras cidades para continuar os estudos? Como era a cidade? Você tinha mais parentes que moravam lá? 

Teve um período em que saímos da cidade [Colorado], porque meu pai se mudou para Altônia e depois para Icaraíma, eu devia ter uns seis, sete anos. Foi nessa época que eu comecei a estudar. Eu atrasei um ano para entrar na escola, porque meu pai tentou me colocar na escola rural, só que ela pegou fogo no decorrer do ano e ele falou que era eu muito pequeno, daria para esperar para entrar no próximo ano já na cidade. 

Então eu fiz a primeira e a segunda série em uma escola lá em Icaraíma. E a gente ia a pé e voltava a pé, às vezes pegava carona com o pessoal da zona rural que passava de carroça. Não tinha as facilidades de hoje, o município não buscava a gente em casa com carro da prefeitura. A gente tinha que ir para a escola a pé, tinha que se virar. 

E os filhos mais velhos tinham que estudar e, nos horários que estavam em casa, auxiliar nos trabalhos da roça. Meu irmão principalmente, que é mais velho que eu, minha irmã, todos eles tinham que ajudar no trabalho da lavoura. As tarefas eram divididas, os pequenos, como eu, ficavam encarregados de levar água para eles na roça e de cuidar dos animais quando chegavam em casa. Era mais ou menos dessa forma, tudo muito simples. Eu lembro que eu não tinha televisão e quando eu ia com meu pai para a cidade, de carroça, eu parava em frente à loja Pernambucanas e ficava assistindo televisão até meu pai me chamar. 

Por incrível que pareça, nós somos sete irmãos, todos morávamos no sítio. Meu pai e minha mãe não estudaram porque não tiveram oportunidade. Meu pai é alagoano e minha mãe é pernambucana. Quando eles vieram para cá, eles já tinham os meus três irmãos mais velhos, que haviam nascido lá em Pernambuco, os demais nasceram todos no Paraná. E a minha mãe falava que ela ia voltar a estudar, nem que fosse naquele ensino de adultos, para dar exemplo para gente, porque todos tinham que estudar. Aí ela e meu pai, quando tinham uns 50 anos, a idade que eu tenho hoje, fizeram o ensino fundamental. E a gente, os sete, todos temos faculdade e hoje atuamos nas nossas respectivas áreas - com exceção de uma irmã minha, que é pedagoga, mas não atua. Todos se formaram com atraso, como eu, por conta das dificuldades, mas todos acabamos ingressando de alguma forma nas atividades que escolhemos. 

E foi com esforço, disciplina. Meus pais insistiam muito nisso. Porque todos nós, sem exceção, trabalhamos de bóia fria, ou seja, trabalho braçal na roça, diariamente. As minhas irmãs trabalhavam de babá, empregadas domésticas. Até que, aos poucos, cada um foi tomando o seu rumo. E não tinha as facilidades de hoje, como esses financiamentos públicos. As universidades públicas eram em quantidade menor. Em Paranavaí, por exemplo, na época não tinha faculdade pública como tem hoje, nem em Umuarama.

 

E como foi esse começo da vida adulta? Você falou que você começou a trabalhar na adolescência e não parou mais. 

Quando eu terminei o ensino médio, eu já estava há seis anos na gráfica e eu queria sair. Eu queria estudar, mas também queria experimentar outra oportunidade. A cidade lá era pequena, pouco desenvolvida e eu queria conhecer outros lugares. Eu já tinha ido pra São Paulo quando tinha 15 anos. Inclusive minha mãe pegou autorização do Juizado, porque eu fui sozinho. Peguei 30 dias de férias no meu trabalho e passei em São Paulo, na casa de parentes. 

Em 1989 eu tive um amadurecimento em alguns aspectos, por conta da eleição. De lá para cá, eu tomei um gosto diferente pela política. Porque em 1989 a eleição presidencial teve características totalmente diferentes das demais. Era a redemocratização. E marcou bastante a minha vida pessoal, até porque, naquela época também eclodia aqui na região norte do Paraná e na região em que eu moro hoje, de Presidente Prudente, uma luta muito grande pela terra, muito intensa do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Existia um conflito deflagrado, uma disputa pela terra que tinha repercussão na política naquela eleição de 1989, principalmente no segundo turno. 

Eu desenvolvi muito interesse pela política, tanto que fui para São Paulo, mas depois fui para Brasília, fiquei dois meses trabalhando lá para conhecer a cidade. Eu tinha intenção de ir para outros lugares, mas não sabia onde ia ficar. No começo dos anos 90 teve uma crise financeira e ficou bem difícil arrumar colocação profissional, então eu acabei aceitando o convite do meu irmão para irmos juntos para São Paulo, para dividir os gastos e ficar mais fácil. E foi onde eu conheci a minha mulher e tudo mudou novamente. Eu comecei a namorar com a minha esposa em 1995 e acabei me fixando em São Paulo. 

Eu trabalhei em uma metalúrgica, inclusive me acidentei e perdi um pedacinho do meu dedo. Eu fiquei dois anos nessa empresa e saí porque tinha passado no concurso para trabalhar no metrô de São Paulo. Eu estava com casamento marcado e não era chamado, não dava para ficar esperando, então entrei em outra empresa grande também, que é tipo a Suvinil. Mas logo saí para assumir o cargo no metrô. 

Na época, a minha mulher estava estudando, e foi quando eu consegui retomar os meus estudos também. Eu já estava com outro pensamento, então, o Direito realmente foi uma opção. Eu sempre fui muito ligado às questões sociais do ponto de vista de Estado, do ponto de vista da dificuldade das pessoas em acessar os direitos, principalmente por causa da questão da luta no campo. Eu achava muito injusta a maneira como meu pai trabalhava, não tinha garantia nenhuma. O dono plantava grama no meio do café, mandava ele embora a hora que quisesse. Esse tipo de coisa me marcou muito. 

 

Em que ano você entrou na faculdade? E como foi essa experiência?

Foi no começo dos anos 2000, na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, que pertence ao município. A faculdade era pela manhã e eu trabalhava à tarde ou à noite no metrô, porque eu revezava turno. 

Então, durante a faculdade, tinha o lado bom e o lado ruim. O lado ruim é porque eu trabalhava a noite inteira, às vezes pegava ocorrência, era agitado, e tinha que ir para a faculdade de todo jeito, direto. Tinha prova, eu ia com sono. Já aconteceu de eu dormir no meio da prova. Mas a vantagem é que eu folgava muito, tinha quatro folgas consecutivas, então dava tempo de colocar tudo em ordem, estudar, fazer meus trabalhos.

A situação ficou um pouco mais grave porque no meio da faculdade nasceu o João. Ele é autista, a gente descobriu um pouco depois, e ele chorava mais do que o normal, a gente não tinha experiência, porque era o primeiro filho. E eu não dormia direito, no pouco tempo que eu tinha para dormir, eu tinha que ajudar a minha mulher, porque ela também sempre trabalhou. Eu chegava em casa cansado, precisava dormir. Chegava meia noite e meia, tinha que acordar às 06h30 e ele estava chorando nos braços dela. Para ela poder descansar, eu tinha que assumir. Muitas vezes tinha que ir ao hospital com ele, voltava de madrugada e dali a pouco já tava na hora de ir pra faculdade. Foi um período difícil, mas eu não me arrependo de nada, porque foi muito importante para mim e para a nossa vida.

 

Conte um pouco da sua experiência trabalhando no metrô e, também, como foi essa experiência de sair de uma cidade pequena no interior do Paraná para viver na maior metrópole do país. Você se adaptou bem? 

De imediato, o que eu tenho para dizer é que eu não gosto de São Paulo. Eu sou de uma cidade que hoje tem 24 mil habitantes. E no metrô, o fluxo diário de passageiros supera 4 milhões de pessoas. Só na Estação Sé, onde eu trabalhei por mais tempo, passavam, em média, na minha época, 800 mil usuários por dia, quase 1 milhão. 

Quando eu cheguei, eu também não tinha muitos amigos. Mas, a rede de apoio em todo lugar que eu fui, que me proporcionou convivências e amizades, foi a igreja. Eu sempre fui de igreja, a paróquia é onde você constrói muitas amizades. Tanto que eu conheci a minha esposa no encerramento de uma novena de Natal. E, depois, no trabalho no metrô, eu comecei a conhecer mais pessoas e a vida foi ficando um pouco mais fácil, apesar de estar em uma metrópole que não combinava comigo. 

Depois, alguns motivos me levaram a sair do metrô. Primeiro, o meu filho autista. Não dava para morar em São Paulo em apartamento pequeno. E porque eu não gosto de São Paulo, eu sofri naquela cidade. Eu até construí as coisas que eu tenho hoje lá, tinha um bom emprego, a família da minha mulher é de São Paulo, eu tinha rede de apoio lá - porque aqui em Presidente Prudente eu não tenho, não tenho um parente aqui -, mas eu trabalhava longe de casa, e eu não posso ficar tanto tempo longe do meu filho como acontecia. Então eu tinha que sair de lá.

E o critério que nós usamos para escolhermos Presidente Prudente foi o atendimento para meu filho. Eu pesquisei e vi que aqui tem uma instituição pioneira em atendimento de autistas no Brasil [trata-se da Escola de Educação Especial Lumen Et Fides]. Eles receberam o meu filho para tratamento, a minha mulher pediu remoção - porque ela é professora na rede estadual de São Paulo há 30 anos, está praticamente aposentada - e eu vim advogar. Advoguei uns dois, três anos, mas não gostei muito dessa relação com clientes, e também tinha duas despesas: a da casa e do escritório. Então tentei o concurso da Defensoria, porque achava que realmente ia gostar. E, de fato, gosto da minha atividade.

 

Quando você conheceu a Defensoria? Até 2006 não havia Defensoria em São Paulo. Você teve contato com a instituição na faculdade? Como começou essa sua relação com essa instituição?

Em 2006 foi o ano em que eu terminei a faculdade, ou seja, quando eu terminei a faculdade, começou a Defensoria do Estado de São Paulo (DPE-SP). Mas teve um acontecimento marcante em que eu conheci a Defensoria de São Paulo depois. Como o meu filho é autista, isso sempre foi uma luta para mim, porque ele tem um grau de autismo que ele é totalmente dependente, não tem autonomia. 

Eu entrei em um movimento autista lá em São Paulo, conheci a AMA [Associação de Amigos do Autista], e comecei a me engajar nisso. Foi quando teve um seminário promovido pela Defensoria Pública com o objetivo de traçar planos para o atendimento da população pobre e autista. Eu fui no evento e durou o dia todo, praticamente. Lá eu conheci a doutora Renata Flores Tibyriçá, uma defensora pública muito engajada. Ela explicava para os profissionais sobre o autismo, para as pessoas acessarem esse direito e procurarem a Defensoria. Então, conheci a Defensoria através do movimento das pessoas com TEA. É um trabalho muito bonito, no qual eu trabalho até hoje e levo isso para a Defensoria Pública do Paraná. 

Quando eu estava advogando em Presidente Prudente, surgiu o concurso, e eu passei dentro da cota para Pessoas Com Deficiência (PCD), porque, quando eu ainda estava no metrô, eu perdi o movimento do joelho. Eu era agente de segurança e um dia nós estávamos acompanhando alguns torcedores do Corinthians quando fomos agredidos por mais ou menos umas 600 pessoas. No episódio eu machuquei o joelho, mas poderia ter morrido. Fiz tratamento e cirurgia, mas fiquei com sequelas, não recuperei mais a condição física do joelho. Consigo andar, mas ainda tenho dificuldade. 

Eu ingressei na Defensoria em Maringá, no dia 15 de julho de 2014. Eu sou o primeiro servidor daquela sede. Tinha três defensores e naquela semana ingressaram outros dois servidores, um técnico administrativo [Jhonny Willian de Souza Augusto] e uma assessora jurídica [Mariana Persona Nogueira]. Em 2016 começaram a entrar mais pessoas. Nós mudamos de sede e, à medida em que fomos aumentando os atendimentos, nós começamos a atender outras áreas. 

 

Como foi para você essa época? Porque você morava em Presidente Prudente e não tinha teletrabalho, você levou alguns anos para conquistar esse direito de poder ir até a sede só algumas vezes por semana, em razão da condição do seu filho. Como foi esse começo na Defensoria?

Não foi fácil. Quando vim trabalhar em Maringá, apesar de ter a minha mãe e alguns irmãos aqui - e, na época, o meu pai ainda era vivo -, foi muito difícil para a minha família. Tem coisas que temos que decidir e nunca saberemos se a escolha foi certa ou errada, porque ficaram algumas sequelas em razão dessa decisão. O meu outro menino, que hoje tem 16 anos, sofreu muito com a minha ida para Maringá e reclama disso até hoje. Isso mexe comigo, mexe com a família, mexe com todos nós. Foi difícil para minha mulher, pois quando o João cresceu, ele demandou muito dela. Ela se esgotou totalmente.

No começo, durante um bom tempo, eu tinha que sair daqui às quatro da manhã na segunda-feira e voltava na sexta-feira às sete da noite. Depois melhorou um pouco, pois os horários foram flexibilizados e eu saía de Presidente Prudente às sete da manhã. Mas eu ainda tinha que passar a semana toda em Maringá, e minha esposa cuidava do João sozinha. Ela fez isso porque a gente precisava sobreviver, mas é desumano, pois ela sofreu demais. Falo sobre isso e me emociono, porque eu não queria fazer isso, mas eu tinha que trabalhar. 

Tudo melhorou em 2016, quando eu consegui redução de 40% da jornada, o que me permitiu ficar dois dias da semana em Presidente Prudente*. Não foi fácil essa questão de trabalhar em Maringá, mas eu enfrentei e, graças a Deus, agora, a minha mulher deve se aposentar logo e meu outro filho está quase na idade de fazer vestibular, então a tendência é de que a família toda vá para Maringá.

* Atualmente, Nildo cumpre jornada presencial em Maringá de segunda a quarta-feira. 

 

Você atua na área da Infância e Juventude Cível e tem um filho com Transtorno do Espectro Autista. A sua experiência pessoal te ajuda nos atendimentos de crianças com deficiência na Defensoria? E a Infância e Juventude foi uma área que você escolheu para atuar ou você acabou “sendo escolhido” por ela?

Quando fiz o concurso para trabalhar na Defensoria, não sabia com quem ia trabalhar, nem onde, muito menos a área, só sabia que era na área jurídica. Mas depois, na posse, nós preenchemos um documento onde tinha um campo em que você poderia colocar suas áreas de interesse. De cara eu já coloquei Infância e Juventude e Administrativo, porque eu gosto mais, no Direito, da relação entre o Estado e as pessoas. Mas em Maringá só tinha Execução Penal e eu fui trabalhar nessa área. Trabalhei por dois anos na Execução Penal e gostava, também, fazíamos atendimentos nas três unidades prisionais de Maringá. Em 2016, quando falaram que iriam vir mais defensores para Maringá e iam abrir as áreas de Família, Registros Públicos e Infância, eu já falei para a defensora coordenadora que eu gostaria de ir para a Infância, e ela me atendeu. Desde então eu estou nessa área.

Agora, o outro lado da pergunta: eu trabalhava no metrô com situações extremas como agente de segurança. Às vezes eu atendia ocorrências em que morriam pessoas, mas essa parte emocional eu conseguia dar uma separada legal. Eu não misturo muito as coisas. Eu tenho meus dramas, meus desafios pessoais, o meu filho que é autista, mas eu separo. 

Eu não sou mais aguerrido por conta de ter filho autista, mas é claro que eu conheço essa situação, eu sempre busquei atendimento para o meu filho, então, eu sei como é a luta das pessoas que buscam atendimento. E, também, quando a gente faz Direito, a gente aprende muito cedo que o cidadão luta muito mais contra o Estado do que contra as pessoas. Porque, veja bem, é até um pouco contraditório: o mesmo Estado que assegura direitos para as pessoas - quando promulga a Constituição e edita e regula as leis - é o maior violador dessas leis. E ele viola da maneira mais cruel que tem, que é impedindo as pessoas de acessar aqueles direitos. E na Defensoria Pública o nosso papel - que eu acho que é gratificante e importante - é permitir que as pessoas acessem o direito e também tenham acesso aos responsáveis por dar esses direitos a elas através da gente. É por isso que nós fazemos reuniões e negociações com outros órgãos e instituições. 

E o que eu percebo é que na área da Infância, os problemas que chegam na Defensoria são causados por falta de dinheiro. Os mesmos problemas, quando as pessoas têm dinheiro, não chegam ao poder público e ao judiciário. A desestruturação tem origem, muitas vezes, na carência, na hipossuficiência, na vulnerabilidade das pessoas. E isso desencadeia toda uma dependência de acesso a direitos e de termos que, muitas vezes judicialmente, defender essas pessoas. Porque na Defensoria Pública, na área da Infância, a gente também defende os pais em muitas situações. Vira e mexe as pessoas são levadas à justiça porque querem tirar o filho delas, alegando que não cuidam direito ou porque o menino cometeu uma infração e está respondendo a uma ação socioeducativa. Mas esses problemas são estruturais, decorrem da carência e da vulnerabilidade em que as pessoas vivem, elas não dão conta de todas as coisas e, muitas vezes, o Estado ataca essas pessoas como se fosse proteger os filhos delas. É uma equação que não é só jurídica. Por isso, na Defensoria Pública, as nossas defesas têm todo um contexto. 

Quando a Defensoria entra no processo - e por isso são de grande valia as equipes técnicas - é para mostrar que você não consegue impor a lei punindo as pessoas. Porque quando o Estado é demandado, provocado, a resposta que ele dá é punir alguém. Só que não tem que punir, tem que amparar. Se você pegar o artigo 226 da Constituição, ele fala que a proteção da família é dever do Estado e da sociedade, de todos nós. Eu acho a Defensoria muito legal porque a gente tem a oportunidade de trabalhar com essas questões - e eu tenho prazer em fazer isso, mais pela minha história de vida do que por ter um filho autista.

 

Teve algum caso atendido por você que te impactou mais do que os outros? 

Já teve vários, mas lembro muito de um que foi emblemático, era um caso de destituição do poder familiar, onde a mãe tinha problemas com álcool e vivia um relacionamento abusivo. O que é um clichê: quase todos os nossos casos que envolvem adolescente ou criança em situação de risco, quando você pega o histórico da família, tem mulher vítima de violência doméstica que não tem recursos para cuidar da família e dos filhos. E esse caso era assim.

Nós fomos fazer a defesa dela, mas estava muito desfavorável, porque, de fato, havia provas de que ela bebia - chegou até a dormir, bêbada, na porta da creche quando foi buscar o filho. E quando o Estado vem pra cima de uma mulher dessas, ele vem para tomar o filho, mesmo, disponibilizar para adoção. 

Só que no caso dessa nossa usuária, o processo se prolongou por muito tempo e ela conseguiu refazer a vida: arrumou um outro relacionamento, que não era abusivo, e estava trabalhando. Ela trabalhava entregando panfletos e, algumas vezes, quando ela estava perto da Defensoria, eu parava para conversar com ela sobre o processo - o pessoal da equipe técnica também. 

E foi muito gratificante, porque nesse caso nós conseguimos reverter [a decisão de destituição do poder familiar] no Segundo Grau, no Tribunal de Justiça do Paraná. Porque as hipóteses para você tirar o filho de uma mãe não são os erros que ela cometeu, não é para penalizar, mas deve ser levado em conta o interesse dos filhos. E se ela conseguiu refazer a vida dela, por que ela não poderia voltar a criar os filhos? 

No final, as duas crianças e um adolescente, salvo engano, voltaram a morar com a mãe. E pelo que eu fiquei sabendo - porque nesses processos normalmente o juiz pede para a família ser acompanhada por seis meses e a nossa equipe técnica acompanha -, foi um sucesso, ela não teve mais recaídas. Ou seja, graças à intervenção da Defensoria, a gente conseguiu provar que, muito embora, naquele período em que as crianças precisaram ser acolhidas, a mãe estivesse no fundo do poço, como como qualquer ser humano, ela podia mudar. E ela melhorou. Foi muito gratificante.

 

Você teve atuação sindical em São Paulo e atuou na Associação dos Servidores da Defensoria Pública do Paraná (Assedepar). Eu queria que você fizesse um balanço, desde quando entrou na Defensoria, sobre a situação dos servidores e servidoras da instituição. Como essa carreira foi se consolidando e o que você observa que avançou e o que falta avançar.

São experiências diferentes para mim. Eu trabalhei por muito tempo em ambientes muito machistas. Não existe mais machismo do que em uma companhia como o metrô, onde, sei lá, se o metrô tem 5 milhões de usuários, e com certeza quase 3 milhões são mulheres. No entanto, nós éramos 1000 seguranças homens para 100 seguranças mulheres. Até nisso tem discriminação. Nas metalúrgicas onde trabalhei, nem se fala! São ambientes machistas, e a hierarquia é colocada ali de uma maneira muito pouco civilizada. Se outra pessoa tem o mesmo cargo que você, mas você é mais antigo, você se sobrepõe a essa pessoa. Esse tipo de relacionamento, com pouco diálogo, sufoca ideias boas e deixa de desenvolver as pessoas. Foram esses ambientes que prevaleceram nos empregos que eu tive anteriormente.

Quando eu entrei na Defensoria Pública, eu percebi que os nossos chefes e supervisores são pessoas jovens, que não sofreram, que vêm de um contexto de vida saudável. São pessoas que têm condição de plantar coisas boas, que acabaram de conseguir um objetivo profissional importante, que é um cargo público como defensor ou defensora. Quando eu cheguei para trabalhar em Maringá, por exemplo, a minha supervisora tinha 26 anos. Hoje eu tenho 51, então, na época, o que ela tinha de idade eu tinha de trabalho, de carteira assinada. 

Eu percebi que o trato, a maneira de lidar, é diferente. É mais fácil você lidar com pessoas que têm uma instrução legal. Até porque, na Defensoria, as pessoas têm acesso a direitos humanos, sociais, a exercer sua maternidade, paternidade, cuidar de uma criança especial, como no meu caso. Nos ambientes em que eu trabalhei antes, nós não tínhamos isso, então, a gente tinha a força da organização para compensar. Quando nós fazíamos assembleias com os funcionários do metrô, tinha um senador, dois deputados estaduais, um deputado federal, cinco vereadores… Era forte, bem politizado, porque nós não tínhamos pessoas fáceis de lidar, com a cabeça mais “desarmada”, como é, por exemplo, em uma Defensoria Pública. E eu falo isso porque eu sempre participei ativamente da Associação [dos Servidores da DPE-PR], inclusive quando precisamos fazer um movimento grevista. E eu nunca fui perseguido por isso, pela minha atuação classista, nem em Curitiba, pela administração superior, nem em Maringá, e isso eu elogio. 

Mas não é fácil, por causa do perfil, porque as pessoas que eu tive que representar na presidência e vice-presidência da Assedepar viveram em um contexto diferente do meu. Você tem que levar isso em consideração sempre. Eu, por exemplo, fui bóia fria, trabalhava na lavoura, em um contexto onde os grandes produtores pegam a mão de obra e não dão direito nenhum, você trabalha e recebe só sua diária. Então, para mim, as conquistas ficam mais acentuadas. Eu consigo dar muito mais valor para qualquer direito por conta das experiências que eu já tive antes, inclusive de perder direitos.

Agora, claro, eu não posso querer transmitir essa percepção que eu tenho, essa experiência de vida, para uma pessoa que começou a trabalhar na Defensoria com vinte e poucos anos e nunca teve problema com patrão, nunca discutiu, por exemplo, um direito. Ela vai se ater àquilo que ela tem e pronto. 

Eu estive na gestão da Assedepar por muito tempo, mas agora eu não tenho condição de assumir muitas responsabilidades, porque eu tenho que dar prioridade para o meu filho, para minha família. Mas estou sempre disponível - e os colegas sabem disso. Eu sempre participo de, pelo menos, uma comissão temática, alguma coisa dentro da Assedepar ou da Defensoria. Mas eu fiquei muito feliz, porque, apesar das dificuldades, a gente agora está crescendo. Eu percebo que há uma tomada de consciência. Porque quando a gente está em um grupo, em uma categoria, temos que estar preparados para abrir mão do “eu” pelo “nós”. Todos nós, servidores, devemos nos associar. Porque essa questão de divergência, isso é gostoso, não tem problema nenhum. Não é certo você abrir mão de fazer parte de uma categoria onde você tem voz, onde você possa todo dia discutir os seus direitos, por causa disso. Pela experiência que eu tive na Assedepar, se eu pudesse falar alguma coisa, deixar uma mensagem, seria de que precisa haver uma consciência de que não se discute as coisas sozinho, você tem que fazer parte. 

 

Para terminar, fale um pouco o que você faz pra relaxar: você gosta de ler? Assistir séries? Pratica algum esporte?

Eu tenho algo que preenche muito meu tempo: uma chácara. Quando eu morava em São Paulo, eu sempre tive esse sonho. Eu gosto muito do campo, morei no sítio até os dez anos. A gente não mora na chácara, mas sempre vou pra lá. Eu tenho meus animais, crio um pouco de gado, tem cavalo, cachorro, galinhas... Planto também um pouco. E, outra coisa, metade dos meus amigos ainda tem uma ligação muito forte com o rural, tenho um monte de amigos assentados e tenho uma convivência muito intensa com essas pessoas. E isso é importante, porque eu tenho muitos desgastes por conta da situação do meu filho, principalmente quando ele não está bem, e eu me refaço quando vou para a chácara. Lá não é área urbana, é rural, mesmo, com pasto, porteira e fazenda perto... 

A leitura eu tô negligenciando um pouco. O último livro que eu li foi indicação de uma amiga, se chama “Todos a bordo”. É interessante, conta a história de 22 tripulantes que deixaram seu dia a dia para trabalhar em cruzeiros. Eles passam muito tempo trabalhando fora e contam as experiências pessoais deles. 

Eu gostava de jogar bola e tênis. Infelizmente, devido às minhas lesões, eu não consigo fazer mais nada disso. Mas faço caminhada quando posso e ando de bicicleta, para fortalecer o joelho. Gosto de assistir esportes na televisão, principalmente futebol e tênis. Também gosto de assistir noticiários, a GloboNews, o “Em Pauta” e algumas entrevistas do Roda Viva. Quando eu tô em casa, a minha tarefa é cuidar do João, principalmente à noite. Então eu assisto televisão e cuido dele, mas às vezes não dá para assistir direito. Paciência… Você faz o que dá. Série eu não tenho muita paciência, porque não sei se eu vou conseguir assistir muito tempo a mesma coisa, então eu prefiro assistir filme, que eu assisto uma vez só e já era!