Com a palavra, a Defensoria: Dezidério Machado Lima, defensor público  30/06/2025 - 16:43

Dezidério viu sua mãe, mais de uma vez, nas mulheres que já atendeu em 12 anos de Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR). Mulheres que chefiam famílias e correm atrás de uma vida melhor para os filhos. Em que a falta de uma rede de apoio estruturada pode comprometer a renda, estudos, relacionamentos e o futuro de uma criança baiana que cresceu em Itaquera, na cidade de São Paulo. Vivendo a infância todo dia em uma casa diferente, enquanto a mãe trabalhava, Dezidério aprendeu a ver nela a referência que precisava para conquistar seus sonhos. Não à toa, ela se formou em Direito. Ele, também, e ainda se tornou defensor.

Hoje, Dezidério continua a atuação na área de Direito das Famílias, mas também trabalha em duas frentes novas. O Comitê Gestor da Política de Prevenção e Enfrentamento da LGBTI+fobia* e a Assessoria Especial de Qualificação, Padronização e Automação do Atendimento, com atribuição para trabalhar também como Encarregado de Proteção de Dados, acompanhando a adequação da Defensoria à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ambas atuações motivadas por um interesse profissional e pessoal, e sempre na tentativa de se reinventar.

O defensor admite que pensa diferente do início, quando passou no concurso e entrou na DPE-PR. Acreditava que a Defensoria poderia transformar o mundo. Já sabe que isso não é possível. Por outro lado, Dezidério descobriu que ela pode transformar a vida das pessoas. De formas diferentes, mas como também aconteceu no caso dele mesmo.

Dezidério é o entrevistado deste mês do projeto Com a Palavra, a Defensoria.

Dezidério é defensor público empossado no 1º Concurso da DPE-PR. (Daniel Caron/DPE-PR)
Dezidério é defensor público empossado no 1º Concurso da DPE-PR. (Daniel Caron/DPE-PR)

 

Fora do trabalho, qual o seu principal hobby?

Uma das coisas que mais gosto de fazer é viajar. Me encanta conhecer pessoas novas, suas culturas e hábitos. Toda vez que viajo, surge aquela sensação de estar descobrindo algo novo, uma liberdade que me transforma em criança de novo. 

Tem essa ideia de que conhecendo outros lugares, conhecemos mais onde a gente vive e até nós mesmos. Como essas coisas fazem você voltar à infância?

Desde criança eu sempre estive em vários lugares. Nasci em Juazeiro, na Bahia, mas minha mãe era de São Paulo e se mudou para lá comigo. Ela foi com uma mão na frente e outra atrás, sem grana, mas entendendo que São Paulo era um lugar onde as coisas poderiam melhorar.

Dos quatro aos dez anos, eu vivi em várias casas, de pessoas diferentes, porque era a forma como minha mãe tinha de garantir que outra pessoa cuidasse de mim. Foi um tempo muito difícil. Ela começou como secretária em um escritório de advocacia e, com muito esforço, foi estudar Direito.

Que paralelo você faz entre esse período da sua vida e a Defensoria?

Desde o início, sempre trabalhei na área de Direito de Família aqui. É curioso, porque a maior parte das famílias que a gente atende na Defensoria são famílias desestruturadas. Que não conseguiram fazer a melhor escola, ter uma boa alimentação todos os dias. Famílias que passam por dificuldades.

Tudo que passei me fez ter um olhar diferente, mais empático. Sei como é viver em uma família que não é tradicional.

Como aqueles seis anos em que você viveu em casas diferentes fizeram a pessoa que você é hoje?

Como eu estava em situação de vulnerabilidade, em lares diferentes, precisei aprender a caber nos lugares. Me comportar conforme esperavam de mim, “não dar trabalho”, inclusive para evitar que minha mãe tivesse mais trabalho. E isso me fez ser alguém que não podia errar de forma alguma. Virei uma criança que precisou amadurecer rápido.

Na escola pública, sempre fui um bom aluno. Até por estar vivendo aquela realidade, eu entendi que precisava mudar. A forma que encontrei foi através do estudo.

Com o tempo, minha mãe se formou, passou a trabalhar como advogada, e fomos evoluindo juntos. 

Quando volta para São Paulo, você sente que aqueles momentos de abdicação foram necessários para a vida que vocês têm hoje?

Não me arrependo de nada. Sinto muito orgulho de conseguir chegar onde cheguei, principalmente pelo fato de não ter me distraído ao longo do caminho. Quando volto para lá, sou outra pessoa naquela cidade. Antes, eu vivenciava o pior de São Paulo, problemas no transporte, insegurança. Hoje posso viver o que há de melhor.

E a realização de ser defensor?

É uma dupla realização. Tanto profissionalmente quanto por ser uma função nobre. Ao longo desses anos, eu aprendi que a gente chega na Defensoria querendo mudar o mundo. A gente não consegue mudar o mundo, mas consegue mudar a vida das pessoas. E se você consegue mudar a vida de algumas pessoas nessa caminhada, já valeu à pena todo o esforço para estar aqui.

E claro, em muitas dessas famílias eu via a minha própria família. Dificuldades materiais, necessidades básicas que como defensor tenho a possibilidade de ajudar.

Já com 12 anos de Defensoria, o que você mais gosta de fazer aqui?

Descobri que gosto de liderar equipes, ver que as engrenagens estão funcionando. E quando olho para as minhas equipes, vejo que são muito diversas. Trabalho em três setores diferentes, então acabo coordenando três equipes diferentes, que têm pessoas trans, negras, asiáticas, lésbicas, gays. A minha primeira estagiária na Defensoria, hoje, é minha assessora jurídica.

É bonito ver as equipes trabalharem unidas, com um senso de responsabilidade, em prol da nossa missão institucional. 

Para as pessoas que você atendeu no início da Defensoria, foi importante ter alguém com a sua experiência de vida. Hoje, falamos ainda mais sobre diversidade, com a consciência cada vez maior de que é importante termos pessoas trans e negras, por exemplo, também para essa representatividade no atendimento.

Eu acredito que a referência é tudo. É o que move a vontade humana. Faz toda a diferença ver pessoas que representam você em um local como a Defensoria, porque você começa a entender que é possível chegar ali. Isso deixa o caminho mais confortável, e mostra que é possível dar o primeiro passo para conquistar objetivos.

Sua mãe é a sua maior referência?

Com certeza, pra mim ela representa resiliência. Apesar de não ter uma família estruturada, a gente sempre precisa de uma base. Não é só uma referência profissional, ela me ensinou a ter um objetivo, se esforçar e abrir mão de coisas importantes da sua vida para alcançar. Para mudar de vida, a gente acaba tomando decisões difíceis. Quando tomei posse, ela ficou muito orgulhosa. Dizia que era por causa dela que eu tinha ido para o Direito. Mas eu também lembrava para ela não tirar meu mérito (risos).

Falando sobre seu trabalho na administração, como tem sido atuar com a LGPD?

Caí de paraquedas. Por não estar familiarizado com o assunto, precisei estudar, e hoje, sem dúvidas, a proteção de dados é minha área favorita de atuação. Com anos de carreira você acaba lidando com questões similares e esse campo é muito novo e necessário. A Defensoria Pública é uma instituição que ainda precisa evoluir muito na questão de proteção de dados.

Essa área tem esse viés de compliance, de governança. Mas ao mesmo tempo ela é um direito fundamental e perpassa também outras questões. Acredito que, com o tempo, ainda mais na era digital, vão começar a chegar demandas relacionadas à privacidade para a atuação da Defensoria. Afinal, a proteção de dados também é um direito.

No comitê [da Política de Prevenção e Enfrentamento da LGBTI+fobia], a experiência também é bem recente, certo?

Ainda estamos em desenvolvimento, principalmente com o Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos trabalhando em demandas mais burocráticas. Eu sou um homem cis, homossexual, e eu acredito que seja importante nós ocuparmos esses espaços de liderança. Como o comitê é específico, nós buscamos ter o maior número de pessoas LGBTI+ dentro dele. Nem sempre isso é possível, mas conseguir construir essa representatividade dentro da Defensoria é importante. Se você tem um espaço de denúncia ou acolhimento para aqueles que sofrem algum tipo de preconceito, isso torna o ambiente mais atrativo para as pessoas dessa comunidade, demonstra que a instituição se preocupa com isso. 

Você vê essa inclusão dentro da instituição também por influência dos projetos de atendimento ao público, como o Meu Nome, Meu Direito?

A missão da Defensoria é atender os mais vulneráveis, não só os economicamente prejudicados, mas também as minorias. Então, não faz sentido você ser uma instituição que atende esse grupo e não ter esse acolhimento para os que trabalham nela. Acredito que entre as outras instituições do sistema de Justiça, a Defensoria é a mais acolhedora. O curso de Direito já é um espaço formal, muito litúrgico, de distanciamento das pessoas, com muita linguagem jurídica e pouca troca. Nós, defensores, temos a possibilidade de tentar causar fissuras no sistema para conseguirmos promover alguma transformação social.

Pra você, qual é a Defensoria dos próximos anos?

Eu quero ver a Defensoria crescendo, atendendo o maior número de pessoas possível. Quero que ela chegue em todos os paranaenses, que esteja presente em todas as comarcas, usando a tecnologia e a proteção de dados em seu favor. Agora com esse cargo voltado para a proteção de dados, gosto dessa jornada, quero que sejamos uma instituição de referência. 

O que eu quero é o que todos querem. É o que a Constituição quer.



*Comitê Gestor da Política de Prevenção e Enfrentamento da LGBTI+fobia: órgão responsável por promover o combate a todas as formas de preconceito e discriminação contra o público LGBTI+ no ambiente da DPE-PR.