Com a Palavra, a Defensoria: Ane Carolina Santos Nascimento, gestora da sede central de Curitiba 31/07/2025 - 17:00

A trajetória de uma instituição é feita por centenas de mãos e olhares. Na edição do “Julho das Pretas”, o projeto "Com a Palavra, a Defensoria" conversa com Ane Carolina Santos Nascimento, gestora da sede central da DPE-PR, em Curitiba. Em sua trajetória de 11 anos na Defensoria, a construção da identidade como mulher negra e a busca por uma gestão pública democrática são indissociáveis do trabalho.

Nascida na periferia de São Paulo, sua história é marcada pela determinação de trilhar caminhos inesperados. Com formação em Administração, Ane encontrou na Defensoria uma missão que vai além da burocracia. A partir de um olhar forjado pela vivência de quem compreendeu as estruturas de opressão, sua atuação hoje é focada em garantir um ambiente de trabalho mais humano e digno, especialmente para as trabalhadoras e trabalhadores terceirizados da DPE-PR.

Nesta conversa, realizada dias depois de completar 44 anos, Ane revela como o samba e o rap foram ferramentas para a construção de sua identidade e de sua análise crítica da sociedade, narra a jornada de reconexão com a ancestralidade e compartilha a relação de cumplicidade que construiu com a filha.

Uma história sobre luta, identidade, gestão e afeto.

 

Imagem com três fotos de Ane Carolina.
Ane Carolina Nascimento Costa entrou na DPE-PR em 2014. Fotos: Daniel Caron/DPE-PR e arquivo pessoal.

 

 

Para começarmos, fale sobre a importância do "Julho das Pretas". O que essa celebração e o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha representam para você, pessoalmente e profissionalmente?

Esta data hoje, em especial, o Julho das Pretas, foi algo que há pouco tempo eu comecei a entender a importância e o significado. Não só do Julho das Pretas, mas da luta que nós, pessoas pretas racializadas, promovemos buscando nossa dignidade. 

E para além do momento de luta, ele também é um momento de muita celebração, de reverência àquelas que vieram antes e também de incentivo e exemplo para as futuras gerações.

Você cresceu na periferia de São Paulo. Como essa vivência moldou quem você é hoje e a sua percepção sobre justiça social e acesso a direitos?

Nasci no Grajaú, em um conjunto habitacional. Sou de uma família grande, a oitava filha. E nesse lugar onde cresci faltava absolutamente tudo. 

Cresci ouvindo muito samba e a gente sabe que o samba é uma ferramenta de muita resiliência, ele traz uma crônica social narrada de uma forma muitas vezes até bem humorada, mas ele também é, muitas vezes, o primeiro contato que nós, pessoas periféricas e pretas, temos com a nossa própria história. 

O samba é o espaço onde eu tenho as minhas memórias de infância, com meus irmãos e meu pai, de fazer o balde de instrumento musical, ouvir Bezerra da Silva, Jovelina Pérola Negra, Originais do Samba.

Logo na sequência a gente conhece o rap: Racionais, Dexter, Sabotage, outros grandes nomes dentro das periferias, que já fazem um enfrentamento social, uma crítica mais ferrenha ao sistema, dá nome aos responsáveis pela nossa situação. 

Minha forma de pensar o mundo hoje com certeza passou por este movimento cultural, não só da minha infância, mas de toda a minha vida. A música foi a minha base sociológica para ver o mundo.

E você também tem origem nordestina, certo?

Toda a minha família é baiana. A única filha que nasceu em São Paulo fui eu. Mas eu tenho um amor enorme pela Bahia. Me lembro de ter ido uma vez adolescente para lá e foi a primeira vez que alguém me elogiou, que alguém falou da minha beleza. Isso foi muito importante para minha autoestima. 

Salvador é uma cidade que amo. Eu me identifico muito com a cultura, com as pessoas. Uma coisa que o soteropolitano [gentílico da cidade de Salvador] tem é que nada tá certo, nada tá bom, nada tá como a gente queria, mas a gente ainda encontra ali alguma coisa para festejar, alguma coisa para comemorar. 

A gente ainda encontra na luta diária algumas alternativas de saída e de festejar mesmo, celebrar que a gente tá vivo, que a gente resistiu e que eles nos querem de cabeça baixa, nos querem oprimidos, mas a gente vai entregar o nosso sorriso, nossa alegria, nossa capacidade, nossa inteligência. 

E por que você saiu de São Paulo e veio para o Paraná?

É uma parte em que fico emocionada para falar, porque eu estava em São Paulo trabalhando como operadora de telemarketing, tinha 20 e poucos anos e uma filha. Desde que ela nasceu, eu sempre soube que não daria para ela do bom e do melhor, mas fiz um juramento, uma espécie de acordo, de que eu daria para ela sempre o meu melhor. 

Saiu na televisão um anúncio do Prouni. Você podia escolher cinco instituições de ensino e cinco cursos em até cinco faculdades diferentes. Passei na Universidade Tuiuti, aqui no Paraná. Mas foi tudo muito rápido, não consegui me organizar para sair do meu trabalho e, com uma filha, arrumar onde ficar. Não consegui naquela oportunidade, mas decidi me mudar para Curitiba e tentar um novo processo seletivo

Me organizei, saí do trabalho e, em maio de 2006, me mudei pra cá. Eu, minha filha e tudo que a gente tinha de carona numa Parati. Arrumei outro emprego de telemarketing, consegui a bolsa [na faculdade] em julho do mesmo ano e, desde então, estou aqui com ela. A minha mãe veio logo na sequência e foi o meu suporte.

E como é essa sua relação com a sua filha? 

Eu não sabia o que era maternidade quando ela nasceu. Talvez eu não saiba até hoje. Se você me perguntar sobre maternidade, provavelmente o conselho que vou te dar não vai funcionar, porque costumo pensar que só sirvo para ser mãe da Esther. 

Conforme ela foi crescendo e fui reconhecendo quem era aquela criança e, depois, quem era aquela adolescente, tive que ir me moldando. Hoje ela está estudando Cinema de Animação na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Era o sonho da vida dela.

Fico muito feliz e muito honrada por poder, aos trancos e barrancos, proporcionar que ela tenha essa oportunidade, que ela vá atrás dos seus sonhos. Hoje ela tem 22 anos, é um mulherão que eu trato igual um bebê, ela é muito minha amiga, muito próxima. 

A gente tem essa troca de amigas, onde uma melhora a outra. Eu aprendi com ela a olhar para a vida e para as pessoas com mais ternura.

Como é o seu trabalho atualmente na Defensoria?

Estou na gestão operacional da sede central de Curitiba desde 2023. É a maior sede do estado, nós chegamos a fazer mais de 300 atendimentos diários. Trabalho com 28 trabalhadores terceirizados, cuido da infraestrutura e especialmente dos contratos destes serviços. E foi justamente os contratos terceirizados que me levaram para este lugar. 

Foi uma das coisas que mais me incentivou a assumir aquela posição, para poder acompanhar a forma como se davam as relações interpessoais entre a instituição e esses trabalhadores. Cuido de toda a parte de execução dos contratos, desde o serviço de limpeza, portaria, vigilância, copa, manutenção de elevador, ar condicionado e extintores. 

Faço a fiscalização para que o serviço prestado cumpra com aquilo que foi contratado. Isso contribui não só na parte burocrática - para que a gente saiba que o dinheiro público está sendo bem direcionado, visando o bem-estar e a preservação da infraestrutura. 

A sua formação principal é em Administração. O que te levou a escolher essa área e, mais tarde, a construir sua carreira dentro da Defensoria?

Eu já estava no mercado, atuando como analista comercial, quando soube do concurso da Defensoria. Não tive tempo de estudar, de me preparar, mas minha base como aluna no curso de Administração foi o suficiente para que eu passasse no concurso. Nem sabia ao certo o que era fazer um concurso, não sabia o que era a Defensoria.

Já trabalhando aqui, quando fui atuar na Ouvidoria, eu queria ter contato com os usuários, estar inserida no universo do atendimento, na missão institucional da Defensoria. Fiquei ali quase três anos. Foi um momento muito especial, que me engrandeceu profissionalmente.

Agora, na gestão operacional, sei que nos bastidores a gente faz muito para que a sede central abra as portas. Minha contribuição hoje é proporcionar o melhor ambiente possível para que os usuários sejam recebidos em nossa sede. Essa é a minha missão hoje e eu tento fazer o melhor que posso.

Seu mestrado é em Planejamento e Governança Pública, com pesquisa em participação social. Como você enxerga a aplicação prática desses conceitos no dia a dia da Defensoria? De que forma a instituição pode se tornar mais aberta e participativa?

Uma das motivações da minha escolha do mestrado foi compreender o que a gente fala com muita frequência: “todo o poder emana do povo”. 

O objeto de estudo é analisar com quais ferramentas o povo pode exercer este poder. E governança democrática é isto: quando faço um trabalho de avaliação de qualidade do atendimento, por exemplo, estou direcionando aquele gestor para onde ele tem que investir recursos e, assim, aperfeiçoar a qualidade deste serviço. 

Quando a população traz a sua demanda de forma coletiva, preciso ouvir quem já está nesta luta. E quem está mais na luta pelo coletivo que não os movimentos sociais? Por isso, é preciso ter as portas abertas de forma contínua para que a sociedade civil organizada tenha a Defensoria como um espaço de debate e luta por direitos. 

E a minha escolha pelo mestrado é justamente para que a gente possa instrumentalizar esta participação social dentro da Defensoria. Meu projeto pesquisa todas as ouvidorias das Defensorias e identifica, dentre elas, quais foram as melhores práticas institucionais implementadas até hoje, fazendo uma avaliação de políticas públicas e transformando esta avaliação em um manual de boas práticas. 

Vamos falar um pouco assim agora da Ane fora da Defensoria. Quais são agora os seus hobbies? O que você faz quando você não está no trabalho? 

Como gosto muito de música, eu coleciono discos de vinil. É uma história antiga também, porque o meu padrinho - apelidado de “DJ Jabá” - tinha muitos discos. Quando ele morreu, para trazer alguma coisa da memória dele, eu acabei conseguindo um primeiro LP. E meu esposo me ajudou bastante. Compramos uma vitrola de 1979 e passamos a colecionar. 

Meus discos favoritos dizem muito sobre mim. “Ensaio Geral”, da Alcione, é, na minha opinião, um dos melhores discos de samba do Brasil: intenso, forte e impecável. Amo também “Sangue Bom”, da Jovelina Pérola Negra, uma crônica realista do cotidiano, mas sem se deixar endurecer pelo sofrimento. E meus xodós da atualidade são os discos da Liniker — um corpo excluído, marginalizado, que narra de forma poética e sensível o amor.

Também estou aprendendo a nadar, comecei no ano passado e foi um passo de cuidado, de algo que eu queria fazer por mim. 

E ainda tem o terreiro. No ano passado uma amiga me sugeriu conhecer o terreiro que ela frequentava e acabei indo por curiosidade mesmo, para conhecer. Dei a sorte de ter sido levada pela primeira vez em um terreiro que é totalmente afrocentrado, o “Kilombo de Aruanda”. Só são filhos da casa pessoas pretas. Outras pessoas podem visitar, podem ir nos dias das festas, mas o pai só cuida de pessoas pretas. 

Encontrei um ambiente muito parecido com a minha família. É sempre um lugar muito alegre, festivo, mas com respeito, não só à espiritualidade, mas a todo o processo, a toda a liturgia. Respeito especial aos mais velhos e a tudo o que a ancestralidade pede.

Para encerrar, olhando para a sua jornada, que mensagem você gostaria de deixar para outras mulheres, especialmente mulheres negras, que buscam trilhar seus próprios caminhos e ocupar novos espaços? 

Se eu for olhar para a minha história, a primeira coisa que eu diria é: siga em frente, não desista. Você não sabe exatamente para onde está indo, não tem certeza se vai dar certo, mas o que a gente não pode é parar pelo caminho. Vai doer várias vezes quando você tiver tentando, mas também dói quando você não tenta. 

Se você tiver um objetivo e você só depender de você para correr atrás dele, vai. Sou muito honesta porque sei que para nós, mulheres pretas, a frase "ninguém solta a mão de ninguém" nem sempre se aplica. Muitas vezes, ninguém sequer segurou nossa mão para que a gente pudesse fazer a nossa caminhada. A gente vai ter que caminhar sozinhas. 

Quando estou em um espaço de luta, de resiliência, e olho para aquelas mulheres negras, sei a luta que elas tiveram só para estarem ali. São lutas individuais que, muitas vezes, não temos condições de pegar na mão uma da outra para ajudar, mas, mesmo assim, nós estamos trilhando um caminho em que uma vai guiando a outra pelo exemplo, no acolhimento, na palavra, na troca, na afetividade. 

Acredite. Acredite em você, vá e continue caminhando.