Breves comentários sobre a tragédia do Largo do Paissandu/SP e a luta pelo direito à moradia no País 02/05/2018 - 17:40

A tragédia ocorrida no Largo do Paissandu em São Paulo na madrugada do dia 1º de maio de 2018, com o incêndio e desabamento de prédio público, ocupado por população de baixa renda, com dezenas de vítimas, jogou luz sobre o drama da falta de moradia e do déficit habitacional no país.

Primeiramente, é importante que se diga que o conceito de déficit habitacional é muito utilizado para apontar a necessidade de construção de novas moradias pelo poder público para atender à demanda habitacional em determinado momento. Tal informação quando atrelada à relativa à inadequação das moradias existentes, é capaz de nos fornecer o panorama geral do problema no Brasil.

O déficit habitacional nos proporciona uma noção mais imediata da necessidade de construção de novas moradias para controle do caos social, enquanto a inadequação de moradias indica problemas na qualidade de vida dos moradores. Calcula-se o déficit habitacional levando-se em consideração as habitações precárias, a coabitação familiar, o ônus excessivo com aluguel e o adensamento excessivo de domicílios alugados. Já o cálculo da inadequação dos domicílios se dá por meio da análise da carência de infraestrutura urbana (energia elétrica, abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo), adensamento excessivo de domicílios urbanos próprios, ausência de banheiro exclusivo, cobertura inadequada e inadequação fundiária urbana.

De acordo com estatísticas da Fundação João Pinheiro¹ , que utiliza metodologia considerada referência pelos estudiosos da questão habitacional e adotada oficialmente pelo Governo Federal, o déficit habitacional estimado no país correspondia, em 2015 a 6.355 milhões de domicílios, dos quais 5,572 milhões, ou 87,7%, estavam localizados nas áreas urbanas e 783 mil unidades encontram-se na área rural. No tocante à localização, nas regiões sudeste, sul e centro-oeste, o déficit habitacional nas áreas urbanas, segundo a mesma fonte, ultrapassa 90%. No Paraná, em especial, o déficit habitacional total é de 290.008 domicílios, sendo 76.305 só na região metropolitana de Curitiba. Em contrapartida, são 362.349 domicílios vagos em condições de serem ocupados no estado do Paraná.

O quadro se apresenta ainda mais inquietante quando se constata que, a maior parte desses imóveis vagos, não cumprem com sua função social exigida pela CRFB/88² e que, por outro lado, há nesta e na legislação infraconstitucional pátria, como o Estatuto da Cidade, vários instrumentos fiscalizadores não utilizados pelo Poder Público, como o denominado PEUC³ (Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios), o estabelecimento de IPTU progressivo, dentre outros. Se por um lado, o poder público fecha os olhos para a mencionada situação, estimulando, ainda que indiretamente, a especulação imobiliária nas regiões centrais e expulsando a população carente para periferia das cidades, sem acesso aos instrumentos e infraestrutura urbana, os movimentos sociais ligados à luta pela moradia no país, duramente criticados em momentos como este, seja pelo suposto incentivo à ocupações (ou invasões como gostam de dizer os que nada sabem sobre o tema), seja pela cobrança indevida de valores a título de aluguel dos mais necessitados, acabam por ter função imprescindível no controle do cumprimento da função social dos imóveis sob comento.

Há que se diferenciar aqui os movimentos sociais sérios, que muito importam para a manutenção do Estado Democrático de Direito e, como dito, no controle da função social da propriedade, daqueles que ocupam prédios para perpetuar a desigualdade social, explorando ainda mais os que já quase nada têm. Ainda assim, tais situações que tentam macular as organizações populares, em nada justificam a inércia e negligência do poder público que, quando não cumpre com o seu dever de fornecer moradia digna, deve, ao menos, garantir a segurança das que já existem, tenham elas sido obtidas de maneira regular ou não. Explica-se de maneira bem objetiva: sendo a moradia digna direito social fundamental da população e dever do Estado, não se pode exigir uma postura tranquila e serena daqueles que o veem diariamente violado e, simplesmente, não têm para onde ir⁴ . Sobretudo quando se deparam com, a exemplo de São Paulo, prédios enormes, sem a mínima utilização e/ou destinação. Em suma está posta a equação: milhões de famílias sem domicílio adequado + milhões de imóveis vagos e/ou abandonados + ausência de atuação do poder público (Governo Federal, Estados e Municípios) na formulação de política habitacional séria e adequada.

No estado do Paraná, o Núcleo Itinerantes das Questões Fundiárias e Urbanísticas da Defensoria Pública – NUFURB tem trabalhado para minimizar os efeitos do cenário descrito, na esfera judicial e extrajudicial. Na primeira, por meio da defesa das ocupações coletivas em ações possessórias e reivindicatórias, em todo o estado, como representante das partes ou como custus vulnerabilis; do ajuizamento de ações de usucapião e Ações Civis Públicas, estas últimas, na tentativa de compelir os entes federativos responsáveis a cumprir com seus deveres constitucionais e legais de concretizar o direito à moradia digna à população carente.

Na esfera extrajudicial, o NUFURB tem larga atuação no atendimento dos representantes e oitiva das demandas das comunidades, participando da intermediação entre estas e o poder público e de reuniões em que se discutem temas do interesse da coletividade vulnerável como aluguel e locação social, regularização fundiária, prestação de serviços básicos, dentre outros. Também são encaminhadas recomendações e ofícios aos diversos órgãos e setores responsáveis pela política habitacional no estado, em que se solicita sejam prestados serviços essenciais em ocupações regulares e irregulares, orienta-se sobre as formas de cumprimento pacífico de mandados de reintegração de posse, e sobre a necessidade de se empreenderem políticas habitacionais que tenham como foco superar o grave problema da falta de moradia no estado do Paraná.

 Esse trabalho é realizado para que se evite que a equação acima delineada tenha como resultado a desgraça seguida do caos que pôde ser visto no Largo do Paissandu em São Paulo, no último dia dos Trabalhadores. Até porque, não é, para nós, nada difícil imaginar, com base na história quem, mais uma vez, irá pagar esta conta que, mais que dignidade, engloba vidas.

 

Olenka Lins e Silva Martins Rocha - Coordenadora do NUFURB da DPPR

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira - Defensor Público Auxiliar do NUFURB

 

¹ Disponível, nesta data, em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos1/2742-deficit-habitacionalno-brasil-3.

² Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. [...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

³ Art. 182: § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; - g.n.

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”

⁴ Veja a respeito, a entrevista concedida pela moradora Crivalda em que diz: “Eu tinha medo, mas eu não tinha condições de morar em outro lugar." Disponível, na presente data, em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/acordei-com-o-meu-maridogritando-fogo-diz-moradora.ghtml

 

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