Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com a servidora pública Flávia Bandeira Cordeiro Portela, responsável pelos projetos de inclusão e acessibilidade da Defensoria Pública do Estado do Paraná 29/09/2023 - 11:22

Nascida em Curitiba e mãe da pequena Luana, de 3 anos, a servidora pública Flávia Bandeira Cordeiro Portela é hoje uma grande referência na temática da luta das pessoas com deficiência por acessibilidade, inclusão e exercício da cidadania, dentro e fora da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR). Com uma trajetória de vida marcada pelo trabalho no serviço público, a temática da luta pela inclusão surgiu cedo, quando ela começou a perder a própria visão.

Servidora concursada do governo do estado, Flavia Portela hoje é responsável pelos projetos de inclusão e acessibilidade da DPE-PR na Assessoria de Projetos Especiais, e sua missão é garantir o acesso à justiça para a população com deficiência do Paraná. É por meio de seu trabalho que a instituição deu um salto de qualidade no que diz respeito à temática, por meio da promoção de cursos de capacitação para o público interno e da contratação de um serviço que permite a tradução simultânea da Língua Brasileira de Sinais para o português (e vice-versa), entre outros exemplos. 

Em alusão ao Mês de Luta da Pessoa com Deficiência, memorado no dia 21 de setembro, a Assessoria de Comunicação conversou com Flávia Portela, a entrevistada deste mês da série “Com a Palavra, a Defensoria”. Graduada em Administração, ela compartilhou sua experiência como mulher, mãe e servidora pública da Defensoria à frente de nossas políticas públicas de acessibilidade e inclusão. Confira!  

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Flávia, você pode nos contar, inicialmente, onde você nasceu, cresceu e um pouco de sua trajetória pessoal? Além disso, pode também contar como foi o processo de descobrir a sua condição de pessoa com deficiência? 

Eu nasci aqui em Curitiba. Sou nascida e criada aqui na capital e tenho 35 anos. Sou casada, formada em Administração, e tenho uma filha chamada Luana, de 3 anos. 

A minha deficiência é congênita e evolutiva. Ela se manifesta com mais intensidade em um dado momento da vida. A minha irmã tem a mesma condição que eu, e mesmo assim, minha limitação visual é maior do que a dela e a manifestação da minha doença foi anterior à dela. Eu nunca enxerguei 100% enquanto criança e adolescente. Era algo muito difícil de os médicos identificarem. Meus pais me levavam a oftalmologistas e eles comentavam que era apenas miopia e astigmatismo, e me recomendaram óculos. Eu usava óculos, mas não adiantava. Enquanto a minha visão estava piorando, meus pais começaram a procurar especialistas, médicos mais conhecidos na área, para tentar entender. Só depois, com exames mais detalhados e específicos, conseguimos o diagnóstico.

É uma condição genética chamada “degeneração macular”, em que uma parte da retina, que é o local em que a imagem é formada, tem uma degeneração, uma mancha na retina. A condição é irreversível e, por mais que tivessem identificado a condição com antecedência, não tinha nada que pudesse ser feito, pois não existe tratamento, e esse é o grande ponto.

A primeira manifestação da minha doença apareceu quando eu tinha cerca de 17 anos, que foi o ano do meu pré-vestibular. Essa época me preocupou, porque eu comecei a ter muita dificuldade de copiar a matéria no quadro, mesmo usando óculos. Quando tive o diagnóstico, o médico me disse que nada poderia ser feito, e que talvez eu perderia 100% da visão. O único cuidado que eu precisava ter era de não tomar sol direto nos olhos. Fiquei um pouco anestesiada diante dessa notícia, principalmente em um ano de estudos para o vestibular.

Porém, o meu caso se agravou mesmo durante a minha graduação. Sou formada em Administração e foi durante os quatro anos de estudos que a minha deficiência de fato se concretizou. A minha visão piorou muito ali, dos 18 aos 21 anos. Eu terminei a faculdade sem ter nenhum material escrito, porque eu já não conseguia mais fazer a leitura. 

Foi no primeiro ano de faculdade que tive que entender o que estava acontecendo comigo, que aquela era uma nova vida para mim. O meu processo de aceitação foi relativamente rápido. No início, eu não contava para ninguém sobre a minha condição. Demorou até eu entender que existe uma vida e um espaço para as pessoas com deficiência. 

 

Você é muito ligada à sua família e comentou que é mãe de uma menina de 3 anos. Pode nos contar como é ser uma mãe com deficiência?

Eu e meu marido nos preparamos muito para ter um filho. Nos planejamos, e eu engravidei rápido. Inicialmente, eu tinha medo de a minha filha ter algum tipo de deficiência. Já participava de vários grupos de pesquisa na época e sabia que a minha limitação visual era genética.

Foi muito difícil para mim justamente porque eu tinha poucas certezas com relação à minha deficiência. A síndrome é rara e eu soube que a probabilidade de a minha filha ter também essa condição era baixíssima. A Luana nasceu sem deficiência em 2020, e foi uma gestação tranquila. Eu sempre quis ser mãe, e ser mãe é um desafio enorme.

Eu nunca deixei a minha deficiência me definir como pessoa. A deficiência é apenas uma das minhas várias características. Mas, mesmo assim, existem momentos em que essa minha característica me atrapalha, me limita. Eu tinha e ainda tenho medos. Enquanto mãe com deficiência, eu tinha medos diferentes de outras mães. Enquanto a minha amiga estava com medo de o bebê engasgar, eu tinha medo de não conseguir trocar corretamente a fralda da minha própria filha. Meu marido está sempre comigo no auxílio das atividades, ele me auxilia com esses tipos de barreiras, mas às vezes estou sozinha e preciso dar conta.

Eu não enxergo a Luana, mas isso fez eu me conectar com ela de outras formas, a minha conexão é sensorial e mais aguçada. Mesmo que eu não veja que ela está chorando, por exemplo, eu sei exatamente o que significa aquele choro, se é fome, medo, dor. Nós desenvolvemos outras habilidades, na maternidade, no trabalho, na sociedade como um todo. A minha deficiência não me define como pessoa. Faço sempre o meu possível para superar a minha limitação visual.

Mesmo a Luana sendo pequena, ainda, eu converso muito com ela sobre o assunto. Esses dias tinha uma atividade de pintura da escola, e nesse momento eu pensei “Meu Deus, e agora?”. Eu então cheguei bem perto do desenho para tentar ver, fiquei com o rosto perto da folha. Quando eu percebi, ela também estava com o rosto perto da folha. Eu parei, conversei com ela, e expliquei que ela não precisava repetir [a ação], que eu fazia isso porque eu não enxergava. Eu entendi que eu fui um espelho pra ela.

Ela me perguntou porque eu não via igual à mãe do amigo dela. Falei que as outras mães enxergavam, que só eu que não enxergava. Ela então deu um beijo no meu olho e perguntou se iria sarar. Aquilo me emocionou e eu contei que eu não ia melhorar, que não ia enxergar. Foi emocionante, mas é um processo natural [Flávia se emociona contando]. 

Quando eu falo sobre a importância de a pessoa com deficiência estar nos espaços, sinto que as mães dos amiguinhos da Luana têm aprendido comigo, assim como a própria escola. Quando eles me mandam um comunicado, por exemplo, em formato de imagem, eles sabem que eu não vou conseguir ler, por isso, eles já descrevem e utilizam a acessibilidade para eu entender a mensagem, assim eu vou “plantando a sementinha da inclusão” nos espaços que frequento.

 

Como foi o início da sua vida profissional e sua trajetória até o serviço público, especialmente como servidora na Defensoria Pública?

Eu iniciei um estágio enquanto estava na faculdade e não mencionei que era uma pessoa com deficiência. Na época, ainda vivia o processo de me entender como pessoa com deficiência e acabei saindo dessa vaga porque estava difícil desempenhar as atividades. Quando eu compreendi a minha condição, acabei entrando em uma empresa com uma vaga destinada a pessoas com deficiência. 

Neste período, fiz um curso de digitação em uma escola para pessoas com deficiência visual. Lá, descobri o leitor de tela e outras ferramentas que seriam úteis para mim. Já atuei na área de Recursos Humanos com foco na diversidade e, em 2012, eu passei em um concurso público no Poder Executivo estadual. 

Cheguei à Defensoria em 2022 e, no início, não havia uma política efetiva de inclusão aqui, então, eu vim com o desafio de olhar para a Defensoria e fazer dela uma instituição acessível e inclusiva. Fico muito feliz de trabalhar aqui, justamente por ser um lugar em que o meu trabalho pode fazer a diferença. Espero ficar aqui para sempre.

 

Você comentou dos desafios que teve em sua jornada profissional, de se descobrir uma pessoa com deficiência. Você discute muito a questão do capacitismo, que é o preconceito contra pessoas com deficiência. As pessoas ainda não entendem muito bem que ele se manifesta principalmente nas entrelinhas. Você pode explicar um pouco mais sobre isso?

Eu sempre gosto de dizer que a maioria dos preconceitos, não só para a pessoa com deficiência, mas em relação a qualquer tipo de preconceito, ocorre por falta de informação. Se avaliarmos o contexto histórico da participação de pessoas com deficiências nos espaços, ela é recente, agora é que estamos sendo vistos e vistas. 

Alguém que nunca conviveu ou trabalhou com uma pessoa com deficiência não vai compreender, muitas vezes, como é a nossa vivência. Acredito muito que o capacitismo vem dessa falta de informação técnica e da falta de convívio, por isso, é tão importante buscarmos a inclusão social. 

O capacitismo pode ser intencional, pois há pessoas que realmente duvidam da nossa capacidade, que têm a ideia de que não vamos conseguir. Existe também o capacitismo em que as pessoas se surpreendem com nossas conquistas, muitas vezes, sem malícia, apenas por desconhecimento. Eu não fico incomodada quando presencio o capacitismo de algumas pessoas com relação a mim, desde que não seja maldoso, claro. Eu acredito no poder da informação.

 

Flávia, você tem um papel muito importante aqui na Defensoria, sendo precursora na área de inclusão. Como é sua atuação, na prática, como gestora dessa temática dentro da Assessoria de Projetos Especiais?

É uma honra muito grande estar na Defensoria cuidando dessa demanda tão importante. Precisamos de um olhar interno para a instituição. Temos servidores(as), defensores(as) e estagiários(as) com deficiência, e temos que atuar para que a Defensoria seja cada vez mais inclusiva, principalmente para nossos(as) usuários(as), especialmente os mais vulneráveis.

Quando falamos de usuários(as) com deficiência, estamos falando de uma fragilidade muito grande. Precisamos olhar para esse público e entender o tanto de barreiras que essas pessoas já precisaram superar para chegar até o atendimento da Defensoria. O mínimo que precisamos ter é a sensibilidade de atendê-los com qualidade, com excelência.

No momento em que cheguei na instituição, fiz um estudo e um plano de ação de acessibilidade, com o objetivo de eliminar barreiras que as pessoas com deficiência encontrariam na Defensoria. Instituímos as capacitações de atendimento para todos(as) os(as) profissionais da instituição, para que tivessem o olhar e a informação sobre o tema para eliminar o máximo possível de barreiras. 

Temos também um Grupo de Trabalho que foi criado para trazer a intersetorialidade para as ações e projetos voltados à pessoa com deficiência, porque quando falamos de acessibilidade e barreiras, encontramos essa barreira em diferentes áreas da Defensoria. É um grupo que se reúne para trabalhar demandas de inclusão e para que assim possamos avançar com ações práticas.

Foi importante a Defensoria ter uma pessoa com deficiência à frente da área de inclusão, porque a representatividade é importante em todos os movimentos. Quando falamos de pessoas com deficiência, por mais que as pessoas pratiquem a empatia, só nós conseguimos entender quais são de fato as nossas dificuldades, quais são as barreiras que existem. Eu consigo, pelas minhas experiências pessoais, entender e conhecer quais são as prioridades na área. Sou uma pessoa com deficiência visual, e por atuar na área de inclusão há cerca de 12 anos, conheço também outras deficiências.

 

No ano de 2022, a Defensoria Pública do Estado do Paraná passou a integrar o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Como foi o início da participação e por que ela é tão importante?

Foi um avanço bem significativo porque a legislação do Conselho ampliou, junto com o Estatuto Estadual da Pessoa com Deficiência, que já garantia a representatividade da Defensoria junto a outros órgãos, porém, sem que a Defensoria tivesse uma participação no Conselho da Pessoa com Deficiência. 

Esse espaço foi importante porque se trata de um colegiado que elabora políticas públicas e debate também as violações de direitos cometidas contra a população com deficiência. Diversas temáticas são tratadas no Conselho, especialmente a questão da fiscalização e monitoramento das políticas públicas na garantia de direitos. A Defensoria se posiciona no colegiado no sentido de direcionar ao Conselho o que é mais efetivo para o público com deficiência no que diz respeito ao acesso à justiça.
 

Estamos no Mês de Luta da Pessoa com Deficiência, e vale lembrar que o Brasil conta com uma importante legislação no tema, o Estatuto da Pessoa com Deficiência. De que forma ele garantiu os direitos desse público?

É uma lei extensa, que garante muitos direitos, separados por políticas setoriais, como no âmbito da saúde, educação, esporte, vida política, atendimento prioritário, enfim. Todos esses direitos estão pautados em uma linha de acessibilidade. Quando falamos de acessibilidade, inclusive, as pessoas pensam só em rampa, elevador, mas não é somente isso, existem diferentes tipos de acessibilidade.

Muitos dos nossos direitos foram concebidos após a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006, que solidificou o compromisso em criar um mundo mais inclusivo. O Estatuto é a primeira legislação que busca efetivar esses direitos trazidos pela Convenção.

 

Apesar de termos o Estatuto, há também uma visão crítica sobre o assunto no sentido de que é preciso criar novas políticas de inclusão no Brasil. Quais são essas políticas que você acha que ainda são “embrionárias”?

O Brasil já tem um arcabouço histórico e muito significativo que garante muitos direitos da pessoa com deficiência quando comparado com outros países. Temos muitas legislações e direitos previstos, o grande problema é que nem sempre essas leis são cumpridas e efetivadas, então, é preciso avançar.

Aqui na Defensoria, meu alcance é muito pequeno quando comparado em relação ao âmbito nacional. Precisamos trazer políticas públicas efetivas no campo educacional, por exemplo. É inadmissível, no meu ponto de vista, que cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil, por exemplo, não tenham uma matéria relacionada à acessibilidade. 

A lei existe, mas não temos profissionais engajados em cumpri-lá. Na área da Pedagogia, é preciso haver um currículo sobre essas diferenças, como ensinar de uma forma diferente, e por aí vai.

 

Agora vamos falar um pouco das situações que você já viveu. Quero saber se existe alguma história que tenha te marcado como servidora na Defensoria. 

Existem muitas histórias, é até difícil eu dizer somente uma. A mais recente é de um atendimento que foi possível graças a uma nova plataforma de tradução simultânea do Português para a Língua Brasileira de Sinais. Uma psicóloga fez o atendimento de uma pessoa privada de liberdade surda com o auxílio da plataforma de tradução. 

O que me emocionou foi saber que o usuário nos contou que nunca teve um atendimento com tanta qualidade. Ele nos comunicou que tinha dificuldades para se comunicar em Libras justamente por nunca ter aprendido essa língua direito. Seu contexto familiar, somado à deficiência, causou uma grande barreira comunicacional, foi muito excludente. Ele conseguiu trazer um relato de vida que justificava muito o contexto em que ele foi preso. Isso me marcou, porque foi um projeto da Defensoria que garantiu uma ferramenta capaz de eliminar essa barreira comunicacional, e que trouxe para este rapaz, possivelmente de forma tardia, uma acessibilidade que garantia a sua inclusão.

Houve também outra situação em uma das capacitações que faço com o público interno. Veja, o objetivo da capacitação é treinar e capacitar as pessoas que trabalham na Defensoria a fazer um atendimento de qualidade às pessoas com deficiência, mas acaba sendo muito mais do que isso. 

As pessoas vêm me agradecer por terem aprendido e adquirido conhecimentos que elas vão levar para a vida familiar. Teve uma servidora que é mãe de uma pessoa com deficiência, e ela me contou que não aceitava a própria filha. Porém, ao me conhecer e ver o espaço que eu ocupava, ela viu que a filha também podia fazer isso.  

Ela relatou que tratava a filha como “coitada”, que não a empoderava o suficiente. Após a capacitação, ela disse que a percepção dela sobre a filha mudou, que percebeu que a filha dela poderia fazer parte de qualquer espaço. Essa situação me fez refletir o quanto a inclusão social agrega. A capacitação fez com que essa servidora, essa mãe, essa mulher, mudasse.