Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com Josiane Lupion, a primeira Defensora Pública-Geral da história do Paraná 29/05/2023 - 09:02

Sobrinha-neta do pintor, ilustrador, caricaturista, desenhista e escultor ítalo-brasileiro radicado em Curitiba Guido Viaro (Província de Rovigo, Veneto, Itália, 1897 - Curitiba, Paraná, 1971), a defensora pública do Paraná Josiane Fruet Bettini Lupion, 66 anos, carrega em seu nome parte da história do Paraná. O nome dela, contudo, é sempre lembrado por ter sido a primeira Defensora Pública-Geral do Paraná, um marco na trajetória independente em relação à política familiar e repleta de experiência adquirida por quem acompanhou de perto a criação da instituição onde hoje é a Subcorregedora-geral, da Defensoria Pública do Paraná.  

Da companhia de Viaro, assumiu o gosto pela pintura. Mas foi do pai, engenheiro químico, a ideia de ingressar no Direito. Deu muito certo. Apaixonou-se pelo Direito de Família e viu na vocação de defensora uma chance de seguir fazendo o que acreditava.

Ela é a entrevistada deste mês da série “Com a Palavra, a Defensoria”. “Eu sonhava com essa Defensoria que está aqui hoje. E vejo um futuro muito promissor para a instituição”.

A imagem consiste em três fotos em forma de colagem, na primeira, Josiane está sentada em seu escritório conversando e gesticulando com o entrevistador. Na segunda foto, ela está em pé posando para uma foto e atrás dela, um paredão branco com a logo da Defensória Pública do Paraná. Na terceira, ela está novamente no seu escritório, sendo entrevistada.

Primeiro, como foi a escolha de ingressar no mundo do Direito?

Josiane Fruet Lupion: Não queria ser advogada. Nem passava pela minha cabeça. Eu queria ser arquiteta. Mas o meu pai estava muito doente, hospitalizado, e um dia falou assim: “minha filha, se eu fosse você, faria Direito. É melhor do que ser arquiteta. O que você vai fazer com a Arquitetura? Você gosta tanto das páginas policiais dos jornais”. Eu adorava. Nós morávamos em Belém, no Pará, mas ele acabou falecendo aqui em Curitiba. Para fazer a vontade do meu pai, resolvi fazer Direito. Não me arrependo! Gosto da arquitetura, adoro decoração, mas o Direito me encantou. Foi apaixonante. Comecei a fazer estágio no Fórum, em São José dos Pinhais, no terceiro ano na faculdade. O professor Luiz Carlos Souza de Oliveira, que era promotor público e meu professor de Direito Penal, disse, na época, que precisava de estudantes para com ele em São José dos Pinhais. Conversei com minha mãe e ela disse: “pode ir”. 

E como foi esse início? 

Josiane Fruet Lupion: Ele queria estagiários para atender a área de Família. Naquela época, quem fazia esse trabalho de assistência judiciária eram os promotores. Eu sentei numa sala e ele disse: qualquer dúvida você pode falar comigo. Eu não tinha tido ainda a matéria de Família. Pensei: “meu Deus do céu!”. Foi quando eu descobri que eu não tinha problema nenhum. Quem tinha problema era aquela população pobre ali de São José dos Pinhais que eu estava atendendo. 

O que aconteceu depois que saiu da faculdade?

Josiane Fruet Lupion: Depois que eu me formei na Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), em 1979, o professor Luiz Carlos iniciou uma parceria com a Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ), que era o órgão que fazia todo o trabalho de assistência judiciária aqui em Curitiba. Ele me convidou para trabalhar com ele novamente. O local ficava, coincidentemente, na Rua Mateus Leme (próximo de onde atualmente é a sede administrativa da DPE-PR), um prédio com uma estrutura no estilo romano. Eu cheguei ao professor e falei: “professor, precisamos ter uma área de Família aqui”. Ele falou: “você pode criar essa área aqui dentro”. 

Quem era o governador na época? 

Josiane Fruet Lupion: Era o governo anterior ao do José Richa (José Hosken de Novaes assumiu o cargo de governador após a candidatura ao Senado do então mandatário paranaense Ney Braga. Os dois foram eleitos indiretamente). Logo depois, durante o governo José Richa, quem passou a fazer esse trabalho era a Secretaria de Estado da Justiça. Abriram, se eu não me engano, cinco vagas para advogado para trabalhar com todos aqueles processos da PAJ. 

Era um embrião da Defensoria?

Josiane Fruet Lupion: Sim. E passamos a atender muitas pessoas na área de Família. Precisei criar um sistema por pastas, na época, para identificação das pessoas atendidas. Não adiantava identificar os sobrenomes. Era muita gente. Então, nós tínhamos que ter um nome, sobrenome e um apelido. A Maria José de Oliveira (nome fictício), por exemplo, tinha um apelido pessoal. Nós perguntávamos qual era. Era “Polaca”. Colocamos, então, ao lado Maria José de Oliveira o apelido “Polaca”. Não adiantava também identificar pelo RG, porque muitos nem tinham identidade. Era uma época muito difícil. 

Como eram os atendimentos na área de Família naquela época?

Josiane Fruet Lupion: As pessoas tinham menos informação ainda. As mulheres achavam que tinham que ficar apanhando em casa porque, se saíssem, poderia configurar abandono de lar. Comecei a perceber como era necessário a educação em direitos. Passei a falar para os estagiários: “Quando chegar alguém aqui, vocês comecem a esclarecer os direitos da pessoa, seja homem, seja mulher”. 

Na sua avaliação, olhando para trás, qual diferença marca o Direito de Família da época e hoje?

Josiane Fruet Lupion: O que nós víamos naquela época? Muitas mulheres que viviam em concubinato. Não era união estável. E para se fazer a prova de que a mulher estava em um relacionamento marital com aquele companheiro era difícil demais em razão do machismo. Era necessário entrar com uma Ação de Indenização por Serviços Prestados. Era super humilhante. As provas eram os filhos, testemunho do vizinho que sabia etc. Levava-se anos para se conseguir uma indenização. Então resolveram regulamentar a união estável, que foi uma maravilha. Foi muito bom, foi a melhor coisa que podia ter surgido na época. Foi um marco no Direito de Família, assim como o divórcio. Tudo era complicado porque você tinha a separação de corpos, a mulher não queria mais conviver com aquele marido. Então, usava-se esse expediente para evitar que ela saísse e, assim, também contornar a acusação de abandono do lar. 

Lembro de um caso em que uma senhora chegou na minha frente com três crianças. O marido espancava filhos e mulher. Entrei com um pedido na Vara de Família solicitando o afastamento dele de casa. O juiz entendeu que era impossível porque ela era amante, concubina. O Direito de Família não reconhecia esse pedido meu. Havia várias mulheres nessa situação. Voltei para a Defensoria e redigi a petição novamente, pedindo o afastamento do pai em nome dos filhos. Não existia na época a figura do juízo prevento - aquele que tem o primeiro contato com a causa e permanece com ela - e o caso caiu em outra vara. Eu fui falar com o magistrado, que acabou recebendo a inicial. Assim que cheguei, ele falou: “se é sobre aquele seu caso inédito aqui, [porque ninguém nunca tinha pedido o afastamento do pai em nome dos filhos], eu já deferi e já vou expedir o afastamento com o cumprimento pelo oficial de Justiça”. 

E depois que a figura do divórcio foi aprovada?

Josiane Fruet Lupion: Foi uma conquista. Chegou muito tímido. Não sabíamos se teríamos aquela enxurrada de divórcio. Primeiro você tinha que estar separado cinco anos de fato. Provou que estava separado cinco anos de fato, o juiz dava o divórcio. Até que acabou essa história.

E, para a senhora, como foi a chegada da Lei Maria da Penha?

Josiane Fruet Lupion: Eu estava na Vara de Família aqui em Curitiba quando ocorreu o crime. E, naquela época, só tinha juiz. Não tinha juíza. Então, os comentários eram assim:“ah, o que será que essa mulher fez pra ele atirar nela?”. Eu pensava: “meu Deus do céu, que coisa horrível!”. Acompanhei à distância a situação e a evolução de toda a briga, a luta dessa mulher para chegar aonde nós chegamos. Os direitos estão evoluindo e sendo cada vez mais reconhecidos. 

Como foi o amadurecimento da ideia de regulamentar a Defensoria dentro dos governos pelo qual a senhora passou? 

Josiane Fruet Lupion: Ninguém entendia o que era a Defensoria. Fui chefe da Defensoria, que era um departamento da Secretaria de Justiça do Estado, entre 2000 e começo de 2003. Pude ver como eram as defensorias estaduais em outros estados. Em 91, a Defensoria do Paraná foi criada, durante o governo de Álvaro Dias, mas precisava ser regulamentada, com uma carreira estruturada. Eles tinham seis meses para regulamentar.

Começou o governo de Roberto Requião e a Defensoria não foi regulamentada. Quando entrou o governador Jaime Lerner, eu falei: "agora, conseguiremos". Ledo engano. Ele não considerou prioridade. Faltou empatia pela população. Requião voltou. Eu imaginava uma Defensoria em todo lugar neste estado. Quando acabou o governo Requião (ele saiu para ser candidato ao Senado), assumiu o Orlando Pessuti, que pediu a regulamentação da carreira. Acabou encaminhando o projeto à Assembleia Legislativa do Paraná, mas com muitas incongruências.

Veio o governo Beto Richa e o então governador trouxe para a Secretaria de Estado da Justiça a procuradora de Justiça Maria Tereza Uille Gomes. Eles retiraram o projeto de lei. Eu falei: “eu não acredito!”. Mas a Dra. Maria Tereza me chamou e também convidou alguns promotores para auxiliar na regulamentação E o governador encaminhou, com o suporte dela, novamente o projeto de lei à Assembleia, dando sequência à regulamentação da carreira de defensor e defensora pública do Paraná. 

Como a senhora recebeu a escolha de ser a primeira defensora pública-geral?

Josiane Fruet Lupion: Era um sonho meu ser defensora e primeira defensora-pública geral. Fomos falar com o governador sobre a questão da escolha do defensor público-geral ser uma escolha das e dos defensores e não lista tríplice. Vou te dizer que não foi fácil, não. 

Saindo um pouquinho da esfera profissional, a senhora tem sobrenomes famosos no Paraná, não é? 

Josiane Fruet Lupion: É muito engraçado. O Maurício Fruet era a oposição, a esquerda, e o Lupion era a direita. Todo mundo dizia assim: “ela trabalha, mas não precisa trabalhar”. Se alguém aqui do estado, desse país, disser que eu nunca trabalhei, que eu me folguei por causa do meu nome, como diziam, está mentindo. Eu nunca faltei ao trabalho, nunca deixei de atender todo mundo. Sempre disse que meu trabalho nunca foi pesado, porque eu gosto dele, eu gosto da atividade, atender a população. É vocação. Ser defensor é vocação.

Como a senhora vê o futuro da Defensoria? 

Eu sonhava com essa Defensoria que está aqui hoje. Eu vejo um futuro muito promissor para a Defensoria. Aumento de defensores para atuar nesse estado inteiro. Não vai ter uma pessoa nesse estado que necessita da Defensoria Pública e que não seja atendida. Isso vai acontecer. Eu tenho certeza. Não vai ser fácil, como não foi até agora, mas quem esperou tantos anos, espera mais um pouquinho. 

Como seus filhos enxergam sua atuação na Defensoria? 

Josiane Fruet Lupion: Eu tenho três filhos. O primeiro é engenheiro de produção. A segunda é uma menina. Ela é engenheira agrônoma. E o terceiro é advogado. O meu primeiro filho casou-se e trabalhava na Renault em Paris, na França. Já estava casado com minha nora, que estava grávida da minha netinha. Ele teve um segundo filho, o Gustavo, que nasceu bem na pandemia lá na França. Hoje ele optou ficar na França e abriu um café. Ele vem para cá em outubro. Então, vou conhecer o Gustavo, que eu não conheço ainda. Minha filha casou, tem dois filhos, um casal. 

E o advogado? Quer ser defensor?

Josiane Fruet Lupion: Não, não quer ser defensor. Mas ele tem alma de defensor. Ele é procurador do Hospital Evangélico Mackenzie. E a minha filha não podia nem imaginar ser advogada de tanto processo que eu levava para casa. Na época, os processos eram físicos. Ela é paisagista. Formou-se em agronomia, mas tem especialização em paisagismo.

A senhora sempre com um pezinho na arquitetura, engenharia...

Josiane Fruet Lupion: Eu gosto bastante, mas eu não me arrependo de ter feito a vontade do meu pai e amo minha profissão.

E quais são seus hobbies hoje?

Josiane Fruet Lupion: Gosto de séries, mas não gosto de cinema. Curto ler, gosto de ir para a fazenda que fica em Castro, onde eu tenho uma égua velhinha, chamada Matilde. Eu digo: “Matilde!” e ela vem correndo. Dou cenoura pra ela. Mas também gosto muito de pintar. 

Qual seu estilo na pintura?

Josiane Fruet Lupion: Gosto de pintar paisagens, vasos com flores. É muito gostoso o cheiro de tinta, você vai criando e misturando, surgem as cores. Tinha um tio meu, mas não era de sangue, o Guido Viaro (artista Ítalo-brasileiro Guido Viaro, falecido em 1971). Ele era casado com uma irmã da minha avó. Convivi muito com ele. Tenho alguns quadros dele. Fico lembrando que ele dizia: “Os quadros precisam ser vistos de longe, quando vai surgindo a figura que você pintou. Você tem que criar as cores”. Ele era muito querido. Morreu lendo um livro, se não me engano, sentado na cadeira.

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