Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com a 1.ª Subdefensora Pública-Geral Olenka Lins e Silva Martins 23/02/2023 - 11:00

Nascida em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, mas paranaense de coração. Mulher negra, 44 anos, mãe de dois meninos, o Rafael, 11, e o Miguel, 6, e 1ª subdefensora pública-geral do Paraná. A descrição conta um pouco da história da defensora pública Olenka Lins e Silva Martins. Filha de defensor público, trilhou um caminho com autonomia e independência, mas com orgulho de suas raízes. A defensora chegou à instituição em 2016 e se tornou uma voz forte no combate ao racismo dentro e fora da instituição. Ao longo da entrevista a seguir, a segunda do projeto “Com a palavra, a Defensoria”, Lins e Silva mencionou a importância de a mulher preta ocupar espaços de poder e lembrou que, apesar dos seus privilégios, assumiu a luta contra o racismo. 

A consciência disso, no entanto, chegou após o envolvimento com as questões sociais inerentes ao início da carreira dela. “A consciência de pertencimento foi uma coisa que adquiri quando comecei a ter essa preocupação social. As pessoas falavam: você é morena, para se referir ao fato de eu ser negra. Isso passou a me ofender. Comecei a ter essa consciência racial, de pertencimento racial”, afirmou. 

Olenka em seu escritório

A defensora, que é a idealizadora da Política de Prevenção e Enfrentamento do Racismo no âmbito da instituição, lançada no fim de 2022, compartilhou um pouco da sua história e da sua carreira na entrevista abaixo.  

 

Quando e como você começou a carreira na Defensoria Pública do Estado do Paraná?

Olenka Lins e Silva: Sou do concurso de 2015, mas comecei a exercer a função em 2016. Estava no final da minha segunda gravidez. Fiz o curso de formação e voltei para o Rio de Janeiro, onde morava. Fiquei em licença maternidade e, em seguida, assumi o exercício da função. A minha primeira lotação foi em Campo Mourão, com a defensora Mariana Amorim.

Mas o que te levou à Defensoria?

Lins e Silva: Foi o propósito maior da Defensoria, que é servir aos que mais precisam. Eu sempre tive essa preocupação na vida. Costumo dizer o famoso “não vim ao mundo a passeio”. Acho necessário ser útil para quem precisa, como uma forma de agradecer pelos privilégios que eu tive.

Qual o papel da sua família na influência para escolher ser defensora pública?

Lins e Silva: Meu pai é do primeiro concurso para a Defensoria do Rio de Janeiro e defensor público aposentado. Sempre achei incrível o trabalho dele. Eu soube da importância da Defensoria Pública muito nova, desde cedo. Mas ele sempre teve uma preocupação muito grande em não influenciar. Além disso, meu pai sempre estudou demais. Sempre o via estudando os livros de jurisprudência. 
 

Percebemos no seu gabinete várias referências religiosas. Como você se relaciona com a religião?

Lins e Silva: Eu sou católica e tenho um respeito muito grande por todas as religiões, como tem que ser, inclusive e principalmente, as religiões de matrizes africanas, por razões óbvias. Já atuei muito na defesa dos espaços destinados ao culto dessas religiões.
 

Você sempre trabalhou muito pautada na questão social e, recentemente, na Defensoria, participou ativamente na construção da política de enfrentamento do racismo dentro da instituição. Como você construiu esse lado?

Lins e Silva: Assim que me formei, comecei a advogar. Vi que aquilo não me interessava muito. Então, fiz um concurso para juíza leiga. Comecei a trabalhar e fiquei quase quatro anos trabalhando nessa função. Fui para um local muito pobre lá em São Gonçalo. Comecei a entender as mazelas dessa população carente de tudo. Passei, então, em um concurso para o Instituto de Terras e Cartografia lá do Rio, que trabalha com a regularização fundiária. Trabalhei na regularização fundiária de favelas como Rocinha, Pavão-Pavãozinho, Santa Marta, Cantagalo, e as de Niterói, como a de Santa Cruz. Quando comecei a trabalhar na Defensoria do Paraná, estava em Campo Mourão, e abriu a possibilidade de trabalhar no Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (NUFURB), que ainda não levava esse nome. O assunto me interessava muito até porque eu já tinha essa expertise. Acabei sendo chamada para auxiliar o defensor público Ricardo Menezes no Núcleo.
 

Mas como surgiu, por exemplo, a questão do racismo na sua vida?

Lins e Silva: A questão da perspectiva de gênero, ocupação de espaços de poder foi sempre muito natural na minha vida. Primeiro, eu sou filho de médica e de um defensor público. Portanto, não venho de uma família exatamente pobre. Tenho consciência dos meus privilégios. Também, por isso, eu demorei a entender que eu era negra. A consciência de pertencimento racial foi uma coisa que adquiri quando comecei a ter essa preocupação social. As pessoas falavam: você é morena, para se referir ao fato de eu ser negra. Isso passou a me ofender. Passei a me incomodar e falar: sou negra, sim! Assim, comecei a entender muita coisa que eu tinha passado e não fazia a conexão com o racismo como, por exemplo, o bullying que sofria na adolescência, supostamente pelo excesso de peso. Diziam que eu era a mais feia da sala. Havia outra menina bem gordinha na minha sala de aula, mas era branca e não sofria este bullying, em especial. Então, se eu não era bonita, tinha que ser inteligente e simpática. E, mesmo que hoje isso não me afete tanto, sem dúvidas foi essencial para a construção da minha personalidade. As coisas começaram a se encaixar. Então, eu fui construindo o meu pertencimento, a minha condição racial. É importante dizer também que eu sou uma das vítimas da passabilidade - o termo se aplica à possibilidade de uma pessoa passar como membro de um grupo identitário diferente do seu original. Isso fazia com que eu parecesse mais interessante, mais querida. Hoje o debate já amadureceu com outras teorias. Uso o cabelo do jeito que eu quero. Fui tomando consciência também da questão sobre cotas, a questão da representatividade. Eu entendi a importância de estar em um lugar e ter um cargo na administração superior da Defensoria do Paraná. A discussão é muito mais ampla do que o simplismo da meritocracia. Eu sou negra e não tive facilidade. Mesmo com os meus privilégios, percebi dificuldades porque, emocionalmente, nós, negros e negras, somos massacrados. Não importa se você é rico ou pobre. Então, essa representatividade é a minha maior responsabilidade.
 

E como foi a construção da Política de Enfrentamento do Racismo na Defensoria do Paraná?

Lins e Silva: A gente tem na Defensoria o papel importante de também contribuir para o debate das políticas públicas. Por isso, nós devemos estar sempre muito atentos às questões sociais e aos caminhos que podem ser trilhados para que se atinja os direitos sociais. Quando chega um negro ou uma negra para ser atendida na Defensoria, precisamos entender o que eles trazem junto. Na maior parte das vezes, além do problema jurídico, há um problema estrutural relacionado à questão racial. Um, não. Vários. Por isso, precisamos dar o exemplo, então construí, em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania, a Política de Prevenção e Enfrentamento do Racismo no âmbito da instituição para combater e erradicar o racismo institucional, com a criação de canais de acesso rápido para a formalização de denúncias de casos vividos por quem integra os quadros da Defensoria e também pelos usuários e usuárias. 
 

Eu entendi a importância de estar em um lugar e ter um cargo na administração superior da Defensoria do Paraná. A discussão é muito mais ampla do que o simplismo da meritocracia. Eu sou negra e não tive facilidade. Mesmo com os meus privilégios, percebi dificuldades porque, emocionalmente, nós, negros e negras, somos massacrados. Não importa se você é rico ou pobre. Então, essa representatividade é a minha maior responsabilidade | Olenka Lins e Silva Martins, 1.ª Subdefensora Pública-Geral
 

Mudando um pouco o tema, como subdefensora pública-geral, na sua opinião, quais são os maiores desafios da instituição?

Lins e Silva: Conseguir expandir a instituição, levando assistência jurídica integral e gratuita a todo o estado do Paraná, em todas as matérias. Tenho trabalhado por isso ao lado dos colegas da Administração Superior. O projeto de regionalização da Defensoria já amenizou um pouco o problema, mas quando olhamos para outros atores do sistema de Justiça, vemos que estamos muito atrás. Em um país com a desigualdade que temos, a importância da Defensoria é gigante. Precisamos crescer. 
 

A Defensoria tem 11 anos. Como que é, para você, fazer parte do começo da estruturação, do crescimento da instituição?

Lins e Silva:
É interessante porque o meu pai, lá no Rio de Janeiro, entre os anos 50 e 60, passou pelas mesmas coisas que estamos passando hoje aqui. Fico feliz em ter consciência de que estamos fazendo a nossa parte para que a Defensoria cresça. 
 

E qual é o papel da Subdefensoria Pública-Geral?

Lins e Silva: Há uma função na gestão, como questões de participação na construção de estratégias e políticas públicas da instituição, designações, estruturação das sedes da região. Na atual administração, há uma divisão de atribuições entre capital, região metropolitana de Curitiba e interior. A 1.ª Subdefensoria Pública-Geral é responsável pelas questões da capital, região metropolitana e do litoral do Paraná. Outra função é relativa à administração dos casos de dispensa e inexigibilidade de licitações. Esse papel também abrange o trabalho de representação da instituição, quando o defensor público-geral não pode estar presente. No momento em que concedo essa entrevista, por exemplo, sou defensora pública-geral em exercício. 
 

Você, assim como os(as) demais defensores(as) que estão na Administração Superior, tiveram uma carreira na ponta, atendendo a população diretamente. O que você traz disso para a gestão?

Lins e Silva: Fundamental entender que são necessários perfis diferentes para a construção da instituição ao longo do tempo. Eu sempre gostei muito de trabalhar na ponta, assim como meus colegas de administração. Mas a importância de se ter essa experiência na ponta é que, quando a gente chega à administração, temos a exata noção do que precisamos gerir. Conseguimos enxergar com mais facilidade a importância de dar suporte a toda a carreira e também aos servidores(as), estagiários(as) e voluntários(as). Preciso dizer, no entanto, que não é nem um pouco confortável. Você deixa de ser pedra e vira vidraça. 
 

Em um país com a desigualdade que temos, a importância da Defensoria é gigante. Precisamos crescer | Olenka Lins e Silva Martins, 1.ª Subdefensora Pública-Geral

Qual é o recado que você deixa aos defensores e defensoras novos que estão chegando à instituição e aos demais, que já têm contribuído para ela ao longo dos anos?

Lins e Silva: Aos meus novos e novas colegas, um recado de agradecimento por terem escolhido a Defensoria Pública do Estado do Paraná. Eles e elas já se mostraram extremamente competentes, dedicados e vocacionados. Com eles e elas, faremos ainda mais diferença na vida das pessoas. Gosto de ressaltar que nós somos instrumento de transformação social, e desejo que o compromisso deles e delas seja focado nisso. Aos demais, que estão na luta comigo há mais tempo, só penso em gratidão e que sigam contando comigo. Foram eles que, num primeiro momento, lutaram para que a Defensoria Pública fosse instalada e estruturada aqui no Paraná e, mesmo ainda jovem, fosse  reconhecida por um serviço de excelência.