Com a Palavra, a Defensoria: Camila Mafioletti Daltoé, assessora jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres 31/01/2025 - 17:28

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Camila Mafioletti Daltoé, assessora jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres. Foto: Daniel Caron/DPE-PR.

No fim de 2021, a Defensoria Pública do Estado do Paraná retomava gradativamente o atendimento presencial à população. Eram ainda meados da pandemia de Covid-19. Mas as mesmas regras de distanciamento social que protegiam contra o vírus também dificultavam o acolhimento adequado do público. Além disso, a condição de vulnerabilidade das pessoas que utilizam o serviço da Defensoria se agravou nesse período, com perda de renda, exposição à doença e outros fatores. Nesse contexto, um dos grupos mais atingidos foi o das mulheres.

Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual em 2020. Isso significa que uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos no país foi vítima de algum tipo de violência no primeiro ano da pandemia. Um crescimento de registros em relação a anos anteriores que coincidiu com o isolamento das mulheres em suas casas junto dos agressores, locais de prevalência das situações de violência doméstica e familiar

Esse é apenas um dos recortes possíveis sobre as questões de gênero. Somam-se as mulheres indígenas, privadas de liberdade, em situação de rua. Realidades também agravadas naquele momento. O recuo do coronavírus, entretanto, ofereceu um espaço para que a DPE-PR avançasse. Foi a chance de intensificar a assistência multidisciplinar especificamente para as populações mais atingidas naqueles anos. 

O atendimento às usuárias da instituição no pós-pandemia necessitaria de diversas frentes de trabalho: mutirões exclusivos para mulheres, atuações em unidades prisionais femininas, inspeções em abrigos e ações de educação em direitos. Um esforço coletivo de planejamento e execução.

Diante desses desafios que apareciam no fim de 2021, o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) recebeu Camila, a convite da defensora pública Mariana Nunes.

Molecada

Questões de gênero eram assunto na mesa de jantar desde a infância. Filha de professores da Universidade Federal do Paraná, Camila cresceu em ambientes politizados. E isso influenciou diretamente em sua formação. Quando criança, sua mãe integrava a Rede Feminista de Saúde - Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivas. Hoje, a servidora da DPE-PR coordena essa mesma iniciativa no Paraná.

Dormia em reuniões sindicais à espera dos pais, mas se animava nas vezes em que as atividades em campo envolviam visitas a assentamentos rurais. A liberdade de correr, brincar e interagir com a natureza nestes lugares lembrava São Miguel do Oeste e Vitorino - cidades de origem da família no interior de Santa Catarina e do Paraná, respectivamente. Enquanto os adultos falavam de agroecologia, Camila mobilizava os mais jovens. Na troca de experiência, aprendeu sobre direito à terra e a importância em envolver crianças e adolescentes no processo de formação política. "Esse elemento é estruturante na perspectiva feminista de pensar o mundo", diz ela. "Com o tempo, o curso de pedagogia da UFPR foi incorporado às atividades do Projeto e o que era uma improvisação virou parte da extensão. Mas no começo, era só uma molecada reunida aprendendo junto".

Foi nesse mesmo período, entre 15 e 20 anos, que Camila começou a frequentar movimentos sociais em prol dos direitos das mulheres. Nesse período, as marchas no Dia Internacional das Mulheres tinham ainda o frescor das históricas passeatas do ano 2000. Naquele 8 de março, 6 mil grupos de 159 países e territórios aderiram aos protestos contra a pobreza e a violência sexual. Quase duas décadas depois, a emoção permanece ao ver mulheres de batom vermelho, mães acompanhadas de seus filhos nas marchas e como a cidade vem se transformando com a presença cada vez maior de adolescentes, imigrantes e pessoas comunidade LGBTQIA+ nas ruas.

“Dessa época, tenho marcas das dores que nos motivam a estar na luta”. lembra ela. Ainda adolescente, acompanhou de perto os extremos que a violência de gênero pode alcançar. Entre as muitas vítimas do machismo que já conheceu, esteve a mãe de uma amiga que frequentemente dava caronas do colégio para casa, de casa para um passeio. A mulher trabalhava como advogada, e o ex-companheiro de sua cliente não aceitou o fim do relacionamento e o divórcio. A vingança do homem foi direcionada à advogada. 

Um ano depois do episódio, Camila se formou em Direito. Acreditando que a Justiça seria uma ferramenta de transformação social, em especial na defesa dos direitos das mulheres.

Vítima ideal

"Eu vou te matar", dizia a pichação na parede da casa da usuária da Defensoria. A mesma pessoa que escreveu também já havia, inclusive, explodido um botijão de gás na cozinha da mulher. Violentada inúmeras vezes, passou pela Polícia Civil, pela Casa da Mulher Brasileira de Curitiba e pelo NUDEM. Mesmo com todo esse histórico, ela pedia a retirada da acusação contra o homem. Desconversa, dizia que as ameaças eram de outra pessoa. Afirmar isso era a escolha dela. E na assistência qualificada à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a Defensoria Pública defende sobretudo a autonomia da usuária. Ou seja, sua escolha precisava ser respeitada, e o serviço deveria ser oferecido igualmente.

Foi um dos casos que marcou Camila nestes três anos de atuação. “É direito dela assumir seus caminhos, mesmo que eles não configurem a ideia de uma vítima ideal, ou seja, a mulher que toma as atitudes esperadas de uma vítima e é criminalizada quando isso não ocorre”, comenta. 

Exemplo disso é também a perspectiva aplicada às mães em situação de rua, majoritariamente negras. A assessora jurídica explica que, nesse caso, a sociedade espera que a mulher não tenha condição de exercer a maternidade. De que ela não tem direito de pensar sobre a criação de um filho devido à situação de rua. “Mas será mesmo? Tentamos aos poucos construir espaços que questionem esse tipo de ideia. Estamos improvisando, inventando, experimentando, errando. Porque esse questionamento também não é esperado e desejado”.

Mulher branca, Camila destaca que tenta se relacionar com as questões de um lugar de privilégio, mas também de compromisso.

 

Imagens com fotos da assessora jurídica Camila Daltoé atendendo ao público.
Camila Mafioletti Daltoé, durante atendimento ao público em mutirões do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres. Fotos: Daniel Caron/DPE-PR.

 

Antes do NUDEM, a servidora da DPE-PR contribuiu com a construção do NUPIGE - Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero do Ministério Público do Paraná. Em ambas as instituições, seu trabalho envolveu a atuação estratégica voltada para as questões de gênero. Isso significa pensar, mais do que os casos individuais, a política pública de atendimento à mulher. Em particular na Defensoria Pública, a possibilidade de intervir judicialmente em contextos de violação de direitos é o que mais motiva Camila. 

“Somos ainda um ator novo no sistema de Justiça e temos a possibilidade de assumir um espaço único de mobilização política na defesa dos direitos. Essa capacidade da Defensoria de ser criativa e construir caminhos para avançar precisa ser aproveitada por todas e todos nós”, diz ela. Entre as marchas que frequentou no início de sua formação, a defesa da criação da Defensoria Pública era uma delas. 

Tempo ao tempo

Quando conheceu seu atual companheiro, há mais de 3 anos, Camila conheceu também a necessidade de olhar para sua relação com a aceleração e o tempo. Ela não esconde que sempre teve um senso de urgência inseparável - na vida pessoal e profissional. No entanto, o namoro com um homem com deficiência fez ela entender a importância de olhar para o senso de urgência na sociedade em que vivemos. Seja para atravessar a cidade no fim de semana, almoçar no intervalo de trabalho ou se preparar para uma partida de futsal. Esporte, inclusive, que pratica desde a adolescência, já foi campeã em Curitiba e jogou durante seu intercâmbio nos Estados Unidos.

“Tenho uma tendência de abraçar o que não dou conta e querer tudo pra ontem, é algo que percebi quando entrei nesse relacionamento, mas que também se refletiu na minha relação com a vida”, conta.

Ela acredita que não é uma característica particular. “O sistema que vivemos obriga a gente a viver em uma velocidade desnecessária e empilhar obrigações e demandas. Mas não precisa ser assim, pelo menos, não vejo mais dessa forma. Eu quero sempre mais, mas não precisa ser tão rápido”. 

Ainda que se revoltem com a falta de acessibilidade para pessoas com deficiência, o casal aproveita sempre que possível para conhecer o mundo da mesma forma. Viajar faz parte da história de Camila desde os tempos em que vivia no banco de trás do carro da família, a caminho da Bahia e de outros lugares do Brasil.

Coletivo

Durante a conversa, a palavra “coletivo” apareceu 11 vezes. Na Defensoria Pública, a servidora trabalha principalmente com questões sobre direitos coletivos. Na militância, ela também é parte de coletivos que atuam em diferentes causas. Ela tem a dimensão de quantas mulheres já foram impactadas pelos trabalhos em que já se envolveu. Em 2024, o NUDEM realizou 1.221 atuações, entre extrajudiciais e judiciais. Esse número, porém, não dá conta de ações de conscientização sobre direitos e outras atividades do núcleo. 

“É claro que nosso trabalho tem um grande impacto, mas ao custo de muitas mãos, processos complexos e mulheres que vieram antes de nós. Esses trabalhos só se fazem no coletivo”, conclui.