Um dia na Penitenciária Feminina do Paraná (PFP): a rotina de trabalho de uma Assessora de Execução Penal da DPE-PR 28/11/2022 - 20:24

Passar pelos portões de uma penitenciária não é fácil. Estar privada da liberdade é uma experiência dolorosa e cheia de privações, e trabalhar nesses espaços exige resiliência, paciência, capacidade de empatia e de escuta, assim como conhecimento técnico e, de certa forma, vocação, já que é preciso estar preparado(a) para lidar com o sofrimento e os desafios que esperam profissionais da Execução Penal. Na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), essa tem sido a rotina diária de Assessoras e Assessores de Execução Penal, grupo formado por 15 graduados(as) em Direito, servidores(as) da instituição, que diariamente atendem pessoas privadas de liberdade em 34 unidades prisionais  e de socioeducação (voltada a adolescentes em conflito com a lei) espalhadas pelo estado. 

Uma dessas assessoras é Maria Emília Glustak, que, assim como os demais, atua nessa função desde março de 2022. Ela já foi estagiária de graduação (no setor de Execução Penal de Curitiba) e de pós-graduação (no Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, o NUDEM, atendendo mulheres privadas de liberdade) da DPE-PR, e atende toda semana a Penitenciária Estadual de Piraquara II (PEP II), unidade para homens privados de liberdade, e a Penitenciária Feminina do Paraná. Esta última, segundo informações do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (DEPPEN), é um estabelecimento penal de segurança máxima, destinada a mulheres privadas de liberdade, sejam presas provisórias ou condenadas. Com capacidade para 406 presas, atualmente abriga 334, 45% delas presas por tráfico de drogas. Lá, a assessora realiza cerca de 15 atendimentos por dia, de segunda a quinta – as sextas são dedicadas ao trabalho administrativo na Sede Central da DPE-PR, e à realização dos pedidos feitos ao longo da semana –, e já atendeu 424 mulheres desde o início do trabalho na unidade. 

Passamos pelos portões da PFP em uma manhã chuvosa e acompanhamos os atendimentos realizados pela assessora. Seis mulheres passaram pela sala de atendimento jurídico, onde Maria Emília costuma trabalhar junto com a estagiária do DEPPEN Júlia Carvalho Cunha, estudante de graduação em Direito, que neste dia não pôde estar presente. 

A primeira demanda do dia é organizar a lista de atendimentos. A escolha quase sempre leva em conta o conteúdo das “pipas”, bilhetinhos que as mulheres enviam para a assessora relatando suas dúvidas e problemas. A lista é então encaminhada ao Grupo de Segurança Interna (GSI) da penitenciária, que vai repassar os nomes às policiais penais que fazem a segurança das galerias. São elas que vão chamar, uma a uma, as mulheres a serem atendidas ao longo do dia.

As demandas mais comuns, segundo a assessora, são os pedidos de prisão domiciliar – a que têm direito mulheres com filhos(as) de até 12 anos de idade incompletos de acordo com o artigo 318, inciso V, do Código de Processo Penal (CPP) –, a atualização dos processos e esclarecimentos sobre a contagem dos prazos das penas. Todas saem com o atestado de pena impresso, documento onde constam os prazos cumpridos e a cumprir, os quais a assessora explica pacientemente.

“Eu gosto muito de fazer atendimento, é a minha parte preferida. Eu gosto desse contato com as apenadas, aqui na minha sala elas vêm, sentam, conversam. E eu procuro fazer o atendimento o mais completo possível. Às vezes elas têm muitas dúvidas sobre questões [das áreas] de família, cível, então, eu procuro esclarecer as dúvidas do que eu sei e também repasso bastante coisa para os outros setores da Defensoria”, explica Maria Emília. Junto com a assistente social da PFP, Lilian Cristiane Moreira, ela também ajuda as mulheres a procurar e reestabelecer contato com filhos, filhas e familiares, já que, em muitos casos, o encarceramento desfaz estes vínculos.

É impossível realizar o atendimento jurídico sem ouvir as histórias de vida e se inteirar de inúmeros dramas que essas mulheres carregam junto com suas penas. São histórias como a de Sofia*, que, aos 27 anos, já cumpre pena há um ano e cinco meses, três meses na PFP. 

Anteriormente presa em uma cidade do norte do estado, onde cresceu e onde vive a sua família, Sofia descreve a rotina diária na Penitenciária da região metropolitana da capital: “Aqui você fica presa dentro de um cubículo. Para o pátio a gente só sai duas vezes na semana, se não estiver chovendo. A gente fica em três ou quatro mulheres dentro da cela e como são várias personalidades, a gente tem que se adaptar”. A 10 meses de conquistar a progressão de regime (semiaberto), Sofia reclama da ociosidade em uma unidade penal que até tem oportunidade de trabalho para algumas mulheres, mas não para todas elas. “Não estudo, não faço curso, não faço nada. Não porque eu não quero, mas porque não me deram oportunidade”. Infelizmente, os canteiros de obras ainda são poucos quando se comparam o número de vagas e o número total de mulheres presas. 

Mas, para ela, nada é mais difícil do que a saudade da família. O pai, que mora no interior, ela só vê por meio de visitas virtuais. A filha, de dez anos, ficou com o pai, de quem ela é separada. Nunca mais viu a menina. É nela que Sofia pensa quando faz planos para o momento em que deixar a prisão: “Eu pretendo primeiramente ir atrás da minha filha, ficar perto da minha família, trabalhar... Eu perdi minha mãe quando tinha dez anos, sei como é ruim não ter uma mãe por perto”.

O sonho de outra vida, longe da cadeia, também está nos planos de Fabiane*. Aos 25 anos, ela também cresceu e foi presa no interior do estado. As passagens pelas unidades prisionais começaram cedo: ainda na adolescência, no “educandário”, como ela mesma diz, referindo-se às unidades socioeducativas hoje conhecidas como Centro de Socioeducação ou Cense. Depois da maioridade, foram mais três passagens, todas por tráfico. Da última, que está cumprindo desde 2020 na PFP, ela afirma que é inocente. “Esse processo eu realmente não devo, porque morava uma pessoa na frente da minha casa, ele correu para a minha casa [com a droga] e a polícia bateu lá. E no dia ele assumiu, falou que foi ele que escondeu a droga na minha casa. Eu tinha acabado de sair [da cadeia], fazia uns seis meses. Como eu já era do tráfico, o juiz me condenou a cinco anos”. 

Na PFP, ela conseguiu um posto de trabalho e, com o salário que recebe, ajuda a família que ficou no interior do estado. Visitas são poucas, uma vez por ano. Ela se emociona ao lembrar do pai quando conta os planos para o futuro. “Eu tô bem focada, porque tenho meu pai doente e tenho muito medo de perder ele estando aqui, neste lugar. Eu tô bem focada nos meus objetivos, já puxei muita cadeia, não quero mais isso para a minha vida. Vou terminar meus estudos, tenho vontade de fazer Direito, e aí, lá fora, eu corro atrás para diminuir minha pena. Eu sei que não vai ser fácil, porque é um dinheiro muito fácil que a gente ganha na rua – e você ganha muito dinheiro [com o tráfico]. Então vai ser bem difícil voltar a trabalhar, mas eu estou com esse objetivo na minha cabeça”.

Tanto Sofia quanto Fabiane são taxativas ao afirmar que o trabalho da Defensoria Pública dentro da PFP ajuda as mulheres, especialmente para que elas possam deixar a unidade e seguir seus sonhos. “Como muitas pessoas não têm advogado, é uma ajuda para tirar uma dúvida, para ver como é que está o processo, se tem algum pedido para fazer, às vezes vem um processo errado... e ajuda as pessoas a ir embora. Eu acho muito bom o trabalho da doutora Maria [Emília], porque foram muitas meninas embora em cima de pedidos que ela mesma fez. Dá pra você ver a gritação [sic] – porque as meninas gritam quando vão embora – e é direto, mas antes não tinha tanto isso”, resume Fabiane.

Desconhecimento

Para a assessora de Execução Penal, o desconhecimento é a maior dificuldade para garantir os direitos destas mulheres, que, muitas vezes, têm apenas o atendimento da Defensoria Pública para ajudá-las. “Desconhecimento não só por parte delas, de não saber quais direitos elas têm, mas também de muitos profissionais e operadores do Direito, que também desconhecem alguns direitos básicos da área de Execução Penal. E como [a população carcerária] é uma população bem vulnerabilizada e inviabilizada, uma população que não traz voto, não traz benefício para quem a ajuda, parece que ninguém tem interesse em aprender mais sobre a Execução Penal, entender melhor como funciona”, resume.

Inércia

E para garantir a liberdade àquelas que têm esse direito, segundo a assessora, falta mais agilidade no processo penal. “Eu acho que a maior dificuldade que a gente enfrenta é uma certa inércia. Quando o processo já está sendo movimentado, ele já está na Vara certa, e já tem a documentação ali na unidade ou a gente consegue pegar, via Defensoria Pública, a documentação necessária para fazer o pedido de liberdade, parece que tudo flui muito rápido. Em questão de um mês e meio a gente consegue soltar”. Porém, caso dependa de outros setores ou de outras comarcas, os prazos podem se estender e, como consequência, manter por mais tempo no cárcere quem já poderia estar desfrutando da liberdade. “Já fiz pedido de remessa de uma Vara de Execução Penal do interior para Curitiba que demorou mais de um mês. Apesar de a gente ter várias dificuldades, eu acho que essa é uma dificuldade tão básica que eu diria que é o que mais trava os pedidos de liberdade”.

Lei de Drogas

Perguntada sobre quais leis poderiam ser revistas para melhorar a situação do sistema carcerário e buscar amenizar o que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou um “estado de coisas inconstitucional”, onde há graves e sistemáticas violações dos direitos fundamentais das pessoas presas, Maria Emília não tem dúvidas ao apontar a Lei de Drogas como a principal norma a ser revista. 

“Acho que é urgente a revisão da Lei de Drogas, urgente. Uma revisão na forma como são executadas as penas por tráfico de drogas, a forma como o tráfico de drogas se organiza dentro e fora do sistema. Acho que uma revisão nessa lei já representaria uma diferença gigantesca no aprisionamento de mulheres”.

“E também é preciso citar a Lei de Execução Penal [LEP, Lei 7.210/1984], que eu não acho nem que precisaria de uma revisão, mas ser estudada de forma mais responsável, ter um esforço maior para que a LEP seja de fato cumprida dentro do sistema carcerário. Parece que só as partes da LEP que são prejudiciais aos apenados têm um esforço para serem cumpridas, mas as partes de benefícios, de direitos das pessoas encarceradas, não são cumpridas, são simplesmente ignoradas.”

Mas nem só de dificuldades vivem as assessoras e assessores de Execução Penal que trabalham nas unidades penais do Paraná. Concluímos esse relato com a descrição do que, para Maria Emília, é uma das melhores partes do trabalho: a gratidão das mulheres que ganham uma nova chance por meio do trabalho da Defensoria Pública:

“Na sexta-feira eu trabalho lá na sede da Bonifácio [a sede central de atendimento da DPE-PR em Curitiba, ao lado da Catedral Tiradentes] e já aconteceu de irem lá me agradecer pessoalmente, me procurar... Porque eu sempre falo: ‘eu estou à disposição quando vocês saírem’. Elas saem [para o regime semiaberto] de tornozeleira e eu falo ‘se tiver algum problema com a tornozeleira, procure a Defensoria’. Porque acontece muito de elas terem algum problema com a tornozeleira, aí o juiz revoga a prisão domiciliar e elas voltam para cá. Então eu já falo: ‘olha, eu não quero você aqui de novo! Eu pedi a domiciliar e, se você sair, não apareça aqui que eu não vou mais atender’”, comenta, em meio a risadas, a assessora, que deseja exatamente o contrário: que tais mulheres procurem e saibam que a Defensoria está a postos para ajudá-las a defender seus direitos. 


* Nomes fictícios para preservar as identidades das mulheres entrevistadas.

 

 

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