Quais são os limites da Liberdade de Expressão? 23/03/2023 - 14:29

Constituição Federal de 1988, artigo 5º, parágrafo IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Esse é o artigo que, para muitas pessoas, resume o direito à liberdade de expressão, um conceito que tem sido muito debatido na sociedade brasileira nos últimos anos. Mas até onde vai esse direito? Divulgação de informações falsas e discursos de ódio contra minorias, por exemplo, podem ser defendidos à luz deste artigo da Constituição?

O tema é tão sensível que já vamos dar a resposta: não, nem tudo pode ser justificado como “liberdade de expressão”. Esse direito não é absoluto e deve ser exercido nos limites da lei, sob pena de caracterizar abuso de direito. Vamos explicar o porquê.

Para o defensor público que atua em Umuarama Cauê Bouzon Ribeiro, a liberdade de expressão engloba a liberdade de crítica e de discordância, desde que respeitosa, sem xingamentos e sem mentiras. “É interessante que a gente tenha discordância. A gente mora em um país democrático, a discordância é o coração da democracia. Mas a partir do momento em que a discordância vira discurso de ódio, a gente tem que combater”. Para ele, com respeito é possível discordar e criticar absolutamente tudo, mas o limite será sempre o direito do outro. 

“O limite do direito de liberdade de expressão se dá quando, sob essa pretensa liberdade, atinge-se a honra, a dignidade ou mesmo a democracia. Inclusive existem crimes, previstos no Código Penal, que definem a limitação da chamada liberdade de expressão, como os crimes de injúria, difamação e calúnia”, explica o defensor público, ele mesmo vítima de injúria em 2020, quando um morador da cidade usou as redes sociais para comentar uma decisão do defensor. 

“Ele utilizou uma expressão que atingiu diretamente a minha honra e é exatamente este o limite da liberdade de expressão. Além disso, disse que eu estaria em outro estado, quando na verdade eu estava em Umuarama, trabalhando em prol da população local, logo, ele mentiu, outro limite claro da liberdade de expressão”, relembra. A notícia falsa e a ofensa ainda geraram outras manifestações em grupos de whatsapp de moradores da cidade. O defensor teve a placa do carro divulgada nestes grupos e chegou a receber ameaças. “A consequência da postagem virtual dele foi real e séria, e esse é o perigo dos posts falsos e injuriosos. É preciso destacar que as manifestações em redes sociais em nada diferem das manifestações em revistas, jornais ou até mesmo orais. A injúria, a difamação e a calúnia devem ser combatidas, seja no mundo real seja no mundo virtual. Devemos, de uma vez por todas, eliminar o mito de que o que se faz por trás de uma tela de computador ou de celular não tem consequências”.

 

NUCIDH trabalha em casos onde a expressão é discriminatória

Em nome da liberdade de expressão, muitos grupos vulneráveis e que pertenceriam às chamadas “minorias” têm sido atacados e desrespeitados. Na DPE-PR, o Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) atende diversos casos de abuso do direito à liberdade de expressão, isto é, casos em que as manifestações extrapolam a mera opinião e se configuram como racismo e outras discriminações.

Um exemplo foi a contratação, por parte da Prefeitura de Apucarana, de um chargista que, em suas obras, fazia apologia ao alcoolismo e à violência doméstica. O Núcleo oficiou ao município, questionando a contratação e a natureza do conteúdo, e foi informado de que as publicações já haviam sido retiradas das redes sociais da Prefeitura, o que foi comprovado pela equipe do NUCIDH.

Outro caso de grande repercussão no estado foi a retratação de crianças negras como pessoas escravizadas em um desfile cívico na cidade de Piraí do Sul. Nele, o Núcleo trabalha de maneira extrajudicial, buscando junto à Prefeitura a organização de um curso de formação com servidores sobre questões étnico-raciais, e também judicialmente, na Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público que investiga o caso. Na mesma linha de combate a manifestações racistas, o NUCIDH atua, ainda, em diversos casos de intolerância religiosa com o objetivo de combater discriminações contra templos de religiões de matrizes africanas. Um destes casos é o de um templo localizado na cidade de Colombo, região metropolitana de Curitiba, que foi vandalizado com mensagens discriminatórias.

“Existem princípios na Constituição que, inclusive, são oriundos de direitos humanos e que norteiam a Administração Pública, impedindo que o poder público aja de forma contrária a eles, e impondo limites à liberdade de expressão”, explica o defensor público e coordenador auxiliar do NUCIDH, Daniel Alves Pereira. “Nesse sentido, independentemente da ideologia de quem ocupa o cargo de administrador(a) público(a), é necessário que esta pessoa se paute pelos princípios da igualdade e não-discriminação, uma vez que estes princípios se encontram expressamente previstos na Constituição Federal. Assim como no particular, a Administração Pública deve se orientar por esses princípios, inclusive em seus discursos, sob pena de responsabilização”. 

Por fim, o Núcleo ainda participou da elaboração da cartilha “A democracia e o direito à livre manifestação”, em parceria com os Núcleos da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP) e da Infância e Juventude (NUDIJ) e com o apoio da Assessoria de Comunicação da DPE-PR. A cartilha explica termos como "liberdade de expressão", "liberdade de pensamento" e "liberdade de reunião", e orienta sobre quais são os direitos de quem participa de atos e protestos de cunho político. Esse material pode ser impresso e distribuído gratuitamente. Clique aqui e acesse.

 

Saiba o que diz a lei

Os crimes de calúnia, difamação e injúria estão previstos no Capítulo V do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940), chamado de “Dos Crimes Contra A Honra”, e têm como possível punição a pena de detenção e de multa. As penas podem ser aumentadas se o crime for cometido na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria, ou, ainda, caso a vítima seja: o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro; funcionário público; Presidente do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal (STF); criança, adolescente, pessoa maior de 60 anos ou pessoa com deficiência. A pena dobra se o crime for cometido por alguém que recebeu ou iria receber uma recompensa financeira para cometê-lo, e triplica se o crime for cometido ou divulgado “em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores”.

Outra lei importante para estabelecer os limites da liberdade de expressão é a Lei 7.716/1989 (a chamada “Lei dos crimes raciais”), que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Recentemente, ela foi alterada pela Lei 14.532/2023 para dispor que, “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” é crime com penas que podem ser aumentadas quando estes crimes ocorrerem “em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação” ou “quando praticados por funcionário público (...) no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las”. 

Outro acréscimo importante à Lei 7.716/1989 é o artigo 20-C, que dispõe que “na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Os Estatutos da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e da Pessoa com Deficiência (Lei 3.146/2015) também são instrumentos de combate à discriminação e de proteção a estes grupos contra ataques de pessoas que ainda confundem manifestações de preconceito com liberdade de expressão.

 

Entenda a diferença:


Injúria – Crime previsto no artigo 140 do Código Penal: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”. Trata-se de ofensa que atinge a honra subjetiva, isto é, o modo como essa pessoa se reconhece e/ou se sente em relação a si mesma. Quase sempre são xingamentos.

Difamação – Previsto no artigo 139 do Código Penal: “Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação”. Aqui, o ataque é a honra objetiva, isto é, como os outros veem essa pessoa. Dizer que alguém pratica um ato moralmente reprovável, como trabalhar bêbada ou sob efeito de drogas, por exemplo, é uma difamação.

Calúnia – Crime previsto no artigo 138 do Código Penal: “Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime”. É uma falsa acusação de crime, dizer que alguém faz algo contra a lei penal.