Luta contra a Intolerância Religiosa também é trabalho da Defensoria Pública 21/01/2023 - 15:00

No dia 21 de janeiro de 2000, faleceu na Bahia a yalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum. A religiosa, fundadora do terreiro de candomblé Axé Abassá de Ogum, sofreu um ataque cardíaco após passar por difamações que questionavam sua fé e o seu caráter. Em homenagem a ela, desde 2007 essa data, 21 de janeiro, celebra no Brasil o Dia Nacional de Luta Contra a Intolerância Religiosa. Para marcar este dia, saiba como a Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) atua na defesa dos espaços sagrados das religiões de matriz africana, que ainda são as que mais sofrem com a intolerância religiosa em nosso país, como explica a 1.ª Subdefensora Pública-Geral da DPE-PR, Olenka Lins e Silva.

“As religiões de matrizes africanas carregam contra si um preconceito secular, reflexo do racismo estrutural. O raciocínio de grande parte da população, sobretudo a não negra, sempre foi no sentido de que se trata de religião cujas práticas não obram para o bem. Por outro lado, há má vontade generalizada em se aprender sobre o tema. Infelizmente, esses aspectos denunciam a força que o racismo tem de fazer com que tudo o que diga respeito à população negra, em sua maioria pobre, quando não é deixado à margem das políticas públicas, receba a pecha de negatividade, para dizer o mínimo. Não é por outra razão que são essas as religiões que mais sofrem ataques de todos os tipos e que acabam por acionar os serviços da Defensoria Pública que irá, em suma, lutar pela efetivação do direito constitucional fundamental à liberdade religiosa”.

 

Liberdade de religião: um direito humano

“Toda pessoa tem direito à liberdade de religião, consciência e pensamento”, é o que diz o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é um país signatário e, portanto, tem o compromisso de fazer valer esse direito em seu território. No Paraná, o Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) da DPE-PR busca cumprir esse papel fazendo a defesa dos espaços sagrados para a população paranaense. 

Um dos casos mais recentes aconteceu em julho de 2020, quando o templo Ile Asè Ayrá Kiniba, localizado em Colombo, na região metropolitana de Curitiba, foi depredado com pichações racistas e preconceituosas. Mensagens de ódio foram arremessadas para dentro dos muros do templo, que já respondia na Justiça a processos administrativos e judiciais movidos por vizinhos. O NUCIDH prontamente requereu a instauração de Inquérito Policial para apurar o caso, o que aconteceu em setembro daquele ano. No momento, as investigações ainda se encontram em curso e o Núcleo segue na defesa do espaço religioso.

No mesmo ano, em plena pandemia de Covid-19, o NUCIDH e a Ouvidoria da DPE-PR, em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU), realizaram duas grandes reuniões com povos de terreiro e de matriz africana dentro do projeto “Diálogos com povos e comunidades tradicionais”. Os encontros ajudaram a aproximar a instituição das pautas e demandas deste povo na defesa da liberdade de expressão de sua fé e religiosidade, além de ter gerado um encaminhamento para a Secretaria Estadual de Segurança Pública e as polícias Civil e Militar do Paraná. Os órgãos estaduais deveriam enviar à Defensoria informações sobre possíveis fluxos e protocolos de atendimento ou normas internas para atendimento de casos de racismo religioso e crimes de ódio no estado. Agora, a partir da análise das respostas recebidas, o Núcleo estuda a possibilidade de solicitar modificações no Boletim de Ocorrência Unificado para que ele passe a especificar quais grupos religiosos foram vítimas dos crimes relatados, uma vez que, atualmente, o boletim não especifica a religião, o que impede a obtenção de dados sobre violência contra religiões de matriz africana no Paraná. "Entendemos que é relevante monitorar e levantar dados sobre a ocorrência de intolerância e racismo religioso no estado. Com isso, é possível pensar a construção de políticas que visem combater o racismo religioso, em especial, a violência contra religiões de matriz africana, que são ainda muito estigmatizadas", explica a assessora do NUCIDH, Débora Pradella.

 

Espaços sagrados

Outro Núcleo da DPE-PR que atua na proteção da liberdade religiosa é o Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (NUFURB). No início de 2020, o Núcleo e a Ouvidoria da DPE-PR, com apoio do Centro Cultural Humaitá, conquistaram na Justiça a suspensão de uma ação de despejo contra o Terreiro de Umbanda Cabana do Pai Tomé e Mãe Rosário, um dos mais antigos de Curitiba. À época, o NUFURB apresentou defesa coletiva do território tradicional e das famílias que lá vivem e praticam a religião há várias décadas e, na decisão, a Justiça reconheceu não só o valor cultural do templo, mas também o direito à moradia da comunidade e o interesse na proteção da liberdade religiosa de matriz africana. O caso agora se encontra na Justiça Federal e também no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), onde há um pedido para que o espaço seja tombado como patrimônio cultural de Curitiba.

Outra atuação do NUFURB é em favor da Casa Espiritual 7 Caminhos/Instituto Flor do Oriente, terreiro de umbanda traçada localizado na Cidade Industrial de Curitiba (CIC). O templo está localizado em uma área que sofreu uma ação de reintegração de posse movida pela Companhia de Habitação Popular de Curitiba (COHAB-CT), suspensa desde novembro do ano passado. “Atualmente, a reintegração de posse foi suspensa, graças também à ação da Defensoria, que compreende, obviamente baseada em leis que protegem as religiões de matriz africana, a necessidade de se garantir o direito ao culto. É uma experiência, por enquanto, bastante positiva para nós, sobre como podemos, enquanto atores sociais, contar com as instituições públicas na garantia dos direitos já assegurados em lei para os povos de terreiro”, avalia Juliana Costa Barbosa, filha da casa espiritual.

Para Mãe Aleh de Oxum, zeladora da Casa Espiritual 7 Caminhos junto com Pai Wilson de Ogum, apesar da consciência de que ainda há um grande caminho a percorrer, a suspensão da reintegração é uma grande vitória. “Vitória contra o preconceito racial, ancestral e da nossa espiritualidade, que é amar, cultuar e proteger a natureza, que são nossos Orixás. Vitória dos nossos ancestrais, que brigaram muito, lutaram muito, para hoje estarmos onde nós estamos! Conhecemos este barracão onde hoje estamos por meio da Espiritualidade, da nossa mentora Cigana Esmeralda, e desde 2019 estamos lutando para permanecer nesse Solo, que é Sagrado para a nossa religião. Para nós, este solo pertence aos Orixás: não é meu, não é do pai, não é dos meus filhos carnais ou espirituais, e, sim, dos Orixás! É sagrado!”. E conclui: “Não é fácil lutar quando somos de raízes africanas, mas nunca desistimos”.

Para a assessora jurídica do NUFURB, Mariana Kaipper de Azevedo, os locais de culto das religiões de matriz africana acomodam saberes ancestrais, valores civilizacionais e organização social próprios da desterritorialização dos povos africanos na diáspora negra. “O patrimônio cultural afro-brasileiro, a dimensão espiritual desses espaços e seus modos de vida devem ser reconhecidos e protegidos. O NUFURB seguirá atuando contra a manifestação do racismo ambiental e religioso no âmbito dos conflitos fundiários e urbanísticos, para a proteção desses locais de culto, como nos casos já relatados e outros defendidos pelo Núcleo”.

 

Leis brasileiras combatem a intolerância religiosa

A intolerância religiosa é crime no Brasil e diversas leis asseguram a liberdade de culto e a proteção a quem queira professar a sua fé em território nacional. Começando pela Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 5º, inciso IV, garante que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), em seu artigo 208, estabelece que é crime “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. A pena para estes atos é de detenção de um mês a um ano ou multa. E se houver emprego de violência, a pena é aumentada. E recentemente, a Lei nº 14.532/2023 acrescentou ao artigo 140 do Código Penal o parágrafo terceiro, que determina que, no caso do crime de injúria, se ela consistir na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência, a pena para o crime será de reclusão de um a três anos e multa.

Já o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) tem, em seu capítulo III, quatro artigos que tratam do direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos. O primeiro deles, o artigo 23, assegura que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; já o artigo 26 da Lei determina que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores”.

Por fim, podemos citar a Lei 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. De acordo com seu artigo primeiro “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

 

Saiba mais

Para saber mais sobre a atuação da Defensoria neste tema, confira o artigo “A Defensoria Pública na proteção dos territórios tradicionais de matriz africana”, escrito pelo Ouvidor Geral da DPE-PR entre 2019 e 2021, Thiago Hoshino, e pela 1.ª Subdefensora Pública-Geral Olenka Lins e Silva, que já coordenou o NUFURB. Publicado na 16ª edição da Revista da Defensoria Pública da União, em 2021, o artigo pode ser acessado aqui.