Defensoria garante a mulher em situação de violência o direito de não participar de audiência de conciliação com o agressor 14/04/2023 - 11:33
Após pedido da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), a 1.ª Vara da Família de Ponta Grossa dispensou a audiência de conciliação – que costuma ser obrigatória em processos da área da Família – para a regulamentação da guarda e visita dos filhos de uma mulher em situação de violência doméstica. Ela possui medida protetiva vigente contra o agressor e pai de seus filhos, por isso, não quis passar pela etapa de conciliação – já que precisaria ter contato direto com o ex-companheiro – e recorreu à Defensoria para que seu desejo fosse atendido.
Em casos de regulamentação de guarda, separação de bens e pensão alimentícia, por exemplo, é obrigatório que as partes envolvidas se submetam a uma audiência de mediação ou de conciliação para que, perante o(a) juiz(a), tentem chegar a um acordo, e para que o processo se encerre em menos tempo e com menos burocracia. Contudo, quando há histórico de violência doméstica e familiar cometida pelo ex-companheiro, a conciliação/mediação não é recomendada, já que a mulher pode vir a ser revitimizada ao ter de chegar a um acordo com o agressor – mesmo quando não há contato entre ambos, a situação de desigualdade estrutural de gênero permanece e dificulta uma resolução justa para a vítima.
A vítima informou à Defensoria a situação de violência doméstica e que havia medida protetiva vigente, concedida pelo Poder Judiciário depois de a ação ter sido ajuizada. Imediatamente ela foi acolhida e orientada sobre seus direitos. “Primeiramente, informamos a ela que ninguém pode solicitar que ela relate novamente as agressões - uma vez que o caso já foi exposto no procedimento da medida protetiva -, para que ela não seja revitimizada, ou seja, para que não precise reviver o trauma”, conta a defensora Raísa Bakker de Moura, que fez o pedido de dispensa da audiência e que atua na área de Família e Sucessões em Ponta Grossa, área que passou a ser oferecida pela DPE-PR neste ano, após a contratação de 40 novos defensores e defensoras públicas.
Muitas mulheres que procuram a Defensoria de Ponta Grossa, de acordo com a defensora, têm feito o pedido de cancelamento da audiência de conciliação. Desde que o atendimento na área de Família passou a ser ofertado em Ponta Grossa, quatro mulheres atendidas pela instituição solicitaram e tiveram a dispensa concedida pelo Judiciário.
A Lei Maria da Penha assegura, em seu art. 10-A, Inciso I, que é preciso resguardar a integridade física e emocional da mulher vítima de violência doméstica, não fazê-la ter contato com o agressor e não revitimizá-la, ou seja, não obrigá-la a reviver o trauma e não fazê-la passar por questionamentos agressivos e machistas sobre sua vida privada. “Entendemos que não há como mediar algo quando antes já houve agressão. Notavelmente se vê o temor da mulher em estar diante de seu agressor”, explica Bakker.
A petição feita pela defensora ao Poder Judiciário foi baseada, principalmente, na Recomendação nº 33 do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da ONU (Organização das Nações Unidas), a qual recomenda que os Estados “assegurem que casos de violência contra as mulheres, incluindo violência doméstica, sob nenhuma circunstância sejam encaminhados para qualquer procedimento alternativo de resolução de disputas”, como é o caso das audiências de mediação e conciliação, mesmo que no âmbito do Judiciário.
“Além disso, mencionamos [na petição] o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, para que a magistrada se sensibilizasse e olhasse para o processo também com uma lupa da perspectiva de gênero”, explica a defensora.
A fundamentação trazida pela magistrada na decisão foi motivo de comemoração, não somente porque permitiu que os direitos da mulher envolvida fossem protegidos, mas também porque reforça a importância da Recomendação nº 33 da Convenção da ONU. A citação deste documento dá ainda mais visibilidade e efetividade para a promoção e defesa dos direitos das mulheres, e demonstra que o Brasil deve respeitar e cumprir acordos e tratados internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres dos quais ele é signatário. A defensora considera essa decisão um avanço e lembra que a Constituição Federal, em seu art. 5º, Inciso II, afirma que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A participação da Defensoria na promoção desse direito não está restrita ao caso relatado: na verdade, a dispensa dessa audiência é algo pelo qual a instituição luta desde 2020, quando o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) solicitou ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que fosse emitida uma recomendação a todos os magistrados e magistradas do estado para que não determinassem a realização da audiência nesses casos. Com o apoio da Coordenadoria da Violência Doméstica e Familiar (CEVID) do TJPR, o pedido foi concedido.
No âmbito interno, a DPE-PR também emitiu, por meio de seu Conselho Superior, uma deliberação para que, nesses casos, o setor de Família da instituição não realize audiências extrajudiciais de mediação quando atender uma mulher em situação de violência doméstica que deseje ajuizar alguma ação nessa área. A Deliberação n.° 17 de 2021 também foi fruto do trabalho do NUDEM.
“Infelizmente, ainda existe grande resistência de juízes e juízas em acatar esta recomendação, e entendemos que, de fato, esses instrumentos de resolução alternativa de conflitos [conciliação e mediação] são muito importantes quando pensamos nas funções e objetivos da Defensoria Pública. No entanto, eles servem a determinados fins, e não a toda e qualquer finalidade, e não podem ser aplicados sem uma reflexão com perspectiva de gênero”, avalia Mariana Nunes, coordenadora do NUDEM.
A coordenadora ainda diz que a dificuldade em aplicar essa recomendação está também na não implantação dos juizados híbridos previstos na Lei Maria da Penha. Esses juizados permitem que a mulher possa, por meio de um só processo e em um mesmo lugar (no mesmo Juizado), resolver tudo o que envolve a sua ex-relação com o agressor. “Os juízes das Varas Cíveis e de Família, muitas vezes, sequer sabem que a mulher está em situação de violência”, explica Nunes. Isso porque a ação penal e o procedimento de medida protetiva tramitam no Juizado de Violência Doméstica e Familiar e a ação de guarda, pensão e visita tramita na Vara de Família, e o(a) juiz responsável por julgar o caso na Vara de Família não é comunicado da ação penal e da MPU ou, por não adotar uma perspectiva de gênero em suas decisões, não chega a considerar a violência em seu julgamento.
A coordenadora também pontua que a audiência de conciliação em contexto de violência doméstica é potencialmente violadora dos direitos das mulheres por diversos fatores: o ato pode fazer a mulher reviver o trauma e provocar novos atos violentos por parte do agressor, sejam eles físicos ou psicológicos, quando a mulher recusa os termos do acordo proposto pelo ex-companheiro - e isso pode acontecer também no contexto de uma audiência virtual; também há casos em que o Estado acaba reproduzindo uma violência institucional ao chancelar acordos desvantajosos para a vítima, que pode concordar com os termos propostos por medo, constrangimento ou para que a audiência acabe logo e assim ela possa se retirar daquela situação que lhe causa medo.