Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com a Psicóloga Naíra Frutos González 23/02/2024 - 10:45

Vinda de uma “família de fronteiras”, como a própria Naíra Frutos González diz, seu perfil se encaixou facilmente na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) em Foz do Iguaçu. A psicóloga de 36 anos chegou à sede da tríplice fronteira - Brasil, Paraguai e Argentina - em 2017, com a missão de levar o atendimento multidisciplinar da instituição a uma cidade com desafios particulares. Questões como o encarceramento de imigrantes, os conflitos fundiários e o aliciamento de crianças e adolescentes frequentemente batem à porta da DPE-PR. Consequentemente, chegam à mesa de Naíra.

Quando a comunicação por meio da língua espanhola é indispensável para realizar o atendimento, o apoio da servidora pode ser necessário. Ela cresceu falando espanhol em casa com os pais, de origem argentina e paraguaia, e a irmã, um ano mais velha. Nascida em Guaíra, cidade vizinha de Foz, Naíra carrega uma herança cultural hispano-americana que atravessa a história do continente: Rafaela López, irmã de Solano López, Presidente do Paraguai durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), foi casada com um membro da árvore genealógica da psicóloga da DPE-PR.

Ela se sente em casa na Defensoria e sente a presença da Defensoria quando está no seu apartamento, já que uma das duas gatinhas que mora com Naíra, a Lisa, foi adotada na sede da DPE-PR. Longe do dia a dia da instituição, a psicóloga mergulha em reflexões sobre a mente, haja vista seu gosto e contato com a psicanálise desde a adolescência. Tudo sempre acompanhado por The Doors, Led Zeppelin ou outra banda de rock.

 

Naíra é a entrevistada deste mês da série “Com a Palavra, a Defensoria”.

Imagens com fotos da trajetória da psicóloga Naíra Frutos González: à esquerda, foto das equipes da Defensoria Pública do Estado e da Defensoria Pública da União em Foz do Iguaçu; ao centro, foto da psicóloga durante aula do curso de defensores populares; à direita, foto da psicóloga junto a uma família indígena atendida pela DPE-PR em Foz do Iguaçu.
Momentos da trajetória da psicóloga Naíra Frutos González: à esquerda, foto das equipes da Defensoria Pública do Estado e da Defensoria Pública da União em Foz do Iguaçu; ao centro, foto da psicóloga durante aula do curso de defensores populares; à direita, foto da psicóloga junto a uma família indígena atendida pela DPE-PR em Foz do Iguaçu.

 

Comece falando um pouco sobre você, como você se define.

 

Eu sou daqui do Paraná mesmo, nasci em Guaíra, que também fica aqui na fronteira [com o Paraguai], então eu só migrei para outra cidade da mesma fronteira. Meus pais têm essa origem paraguaia, que é de onde vem o meu nome, Frutos González. Estar em Foz do Iguaçu é muito familiar pra mim. Além de estar perto dos meus pais, da minha família.

Eu me mudei para Curitiba quanto eu tinha 16 anos pra fazer faculdade, fiz a minha formação na PUC [Pontifícia Universidade Católica do Paraná]. Eu já queria a Psicologia desde os 12 anos de idade. Já gostava de ler Filosofia, coisas de Freud. Minha mãe é psicóloga também, ela entrou no TJ [Tribunal de Justiça do Paraná], temos áreas afins de atuação. Eu trabalhei um bom tempo em Curitiba nas escolas de educação especial e em escola regular com inclusão. Então eu estava nesses espaços mais de educação e saúde, porque eram escolas que também tinham espaço ambulatorial para os alunos.

Sou mulher, sou LGBT, sou lésbica, e quando eu vim pra Defensoria, essas também foram pautas que eu levantei dentro da sede, fui me envolvendo com os movimentos da cidade, em encontros de redes de diversidade, de relações étnico-raciais. 

Aqui em Foz do Iguaçu tem toda uma questão de ser a segunda maior cidade do Brasil com imigração muçulmana e islâmica, dessa cultura diferente com a qual a gente se depara. Ao mesmo tempo, também tem muitas migrações da América Latina, da Venezuela, da Colômbia, do Paraguai e da Argentina.

A gente costuma brincar na Defensoria que aqui em Foz, na tríplice fronteira, a gente tem casos que são muito peculiares. Seria necessário um livro para narrar todas essas histórias, que são bastante singulares, tanto na complexidade quanto no fato de trazerem essa vivência de tríplice fronteira.

 

Você comentou da sua relação familiar com o Paraguai. De onde vem a sua família?

 

Minha mãe é filha de paraguaia e nasceu no Paraguai, apesar de ter sido registrada como brasileira. Já meu avô, é filho de uma argentina com um paraguaio. Meu avô foi registrado em Foz porque Guaíra pertencia a Foz ainda naquela época. O meu pai é brasileiro, mas os pais dele são paraguaios. Minha família também é meio tríplice fronteira. 

 

E como foi sua infância? Você frequentava os países vizinhos?

 

A gente sempre ia para o Paraguai, para a cidade de Pedro Juan Caballero, que faz a “divisa seca” com Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, e é onde mora a família da minha mãe. Meu pai também morava em outra fronteira, uma cidade chamada Bela Vista [MS]. Você vê que é realmente uma família de fronteiras.

Com a parte argentina a gente não teve muito contato, porque a mãe do meu avô já havia falecido, ela é quem veio da Argentina, e aí todos já moravam no Brasil. Mas, sim, no Paraguai a gente teve muito esse convívio, de ir visitar muito a família.

A família do meu pai não tinha um patriarca, tinha uma matriarca. Era ela quem abraçava todo mundo, fazia as reuniões de família. Isso era bem marcante.

 

E como era na sua casa? Vocês preservam tradições paraguaias e argentinas?

 

Dentro de casa se falava português, espanhol e guarani, que é a língua falada no Paraguai. Então, eu nunca fiz aula de espanhol, mas quando surge aqui na Defensoria uma situação em que é necessário falar espanhol, o pessoal acaba me chamando para fazer a tradução ou dar algum tipo de ajuda nesse sentido. Eu tive essa dupla linguagem, além de um pouco de portunhol, claro. Mas eu não me arrisco tanto, não domino. A minha irmã, sim. Ela é só um ano mais velha que eu e fez [graduação em] Letras, hoje dá aula na Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná) em Marechal [Cândido Rondon], e se aprofundou na área de linguística, foi estudar mais o guarani, entender [a língua] profissionalmente.

 

Nós, brasileiros, muitas vezes temos uma imagem do Paraguai que termina logo após a Ponte da Amizade, com a movimentação de pessoas atravessando a divisa para fazer compras, além de problemas relacionados ao contrabando de mercadorias, por exemplo. Imagino que você tenha uma outra imagem do país, não é verdade?

 

É verdade, isso é muito diferente para mim por causa da minha família. Desde a infância, a fronteira sempre foi algo muito natural. Existia uma naturalização de alternar entre dois países a qualquer momento. A cultura, a arquitetura, as tradições de convivência paraguaias sempre estiveram presentes na minha vida. Isso moldou bastante a minha relação com o Paraguai.

Sobre isso, tem uma curiosidade interessante da minha família: Solano López, que foi um dos personagens principais da Guerra do Paraguai, tinha uma irmã chamada Rafaela López, que se casou com alguém da linhagem da minha família. Até hoje, a gente não conseguiu localizar bem quem era essa pessoa.

 

Quando você chegou em Curitiba para estudar ainda não existia Defensoria no Paraná. Como a instituição surgiu na sua vida?

 

O último estágio da faculdade eu fiz no TJ. Trabalhava na Vara de Adolescentes Infratores de Curitiba, que na época tinha esse nome, hoje em dia se chama Vara de Adolescentes em Conflito com a Lei. Naquela época já se debatia a problematização em torno desse nome. Lá eu comecei a ter esse contato bem próximo [com a Justiça]. Gostei bastante dessa área. E aí teve também a influência da minha mãe, conheci colegas dela que já me reconheceram quando iniciei o estágio. 

Eu me formei no final de 2009, a festa [de formatura] foi em 2010, e o concurso para a Defensoria abriu em 2012. Naquela época, recém-formada, a gente vai buscar concurso para fazer sem focar tanto em um específico. Fui conhecer as atribuições e o que de fato é a Defensoria só quando abri o edital. Esse trabalho da Defensoria, que não é só jurídico, mas também multidisciplinar, me encantou muito. 

No meio tempo dos trâmites para eu ser chamada depois da aprovação no concurso, eu também passei em um outro concurso, lá em Guaíra. Então eu fui, voltei para trabalhar na Prefeitura. Tive esse retorno para casa. Nisso, veio a Defensoria e me tirou da rota. Desde que eu li o edital, eu vi que seria ótimo para mim. Eu fiquei muito feliz quando deu certo. Eu sou uma pessoa com muitas ideias e que gosta de fazer projetos, então idealizei muito o meu início na instituição.

Eu acredito muito na Defensoria, por tudo o que ela oferece e tem conquistado no Paraná. Estamos chegando na adolescência da instituição, e acho que devemos trabalhar para amadurecer políticas que nos permitam chegar mais até o povo. 

 

Vamos falar um pouco sobre a sua militância. Como você começou a adentrar os movimentos? Até hoje você é uma militante atuante?

 

Quando eu cheguei a Foz, eu fui buscar as redes de atuação nas pautas LGBT e políticas voltadas à mulher, que são minhas principais bandeiras hoje. Mas eu sou conectada a diferentes pautas desde muito cedo. Acho que tem a ver com o fato de que eu fui uma adolescente um pouco “nerd”. Quando eu tinha 12 ou 13 anos de idade, eu participava de uma ONG que tinha um ideal de trabalhar com a educação de jovens adultos. Nós fazíamos um movimento de sarau cultural envolvendo literatura, música, cinema, promovendo lazer, educação e arrecadação de alimentos, além da alfabetização dessas pessoas. 

Minha militância já começou ali ao estudar, entender os movimentos sociais e o que era uma ONG. Fiquei nesse grupo até ele se dissolver, mesmo já morando em Curitiba, afinal eu sempre voltava para Guaíra, ou seja, eu devia ter meus 18 ou 19 anos quando ele acabou. 

E já em Curitiba, mais ou menos ali em 2013, quando teve aquelas primeiras passeatas falando sobre o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus, eu comecei a entender a luta pelos direitos. Já no começo, eu entendi que aquilo estava virando outra coisa, não era exatamente o que eu buscava.

Mas sempre foi assim, meu pai também sempre foi interessado na política. E algo que sempre me puxou muito foi a luta indígena, pois a minha família tem origem indígena, o Paraguai não foge muito dessa luta. A minha bisavó veio de uma comunidade indígena no Paraguai em uma área rural que foi utilizada por brancos para serviços domésticos. Então, ela saiu de lá com dois filhos para ir para Guaíra e conseguir um emprego, já que era uma cidade com potencial grande, por conta das Sete Quedas e por ter uma indústria grande de mate. Minha família vem dessa realidade de luta pelo direito à terra, algo com que hoje eu também trabalho dentro da Defensoria.

 

Como os conflitos agrários, que há tempo estão presentes no Paraná, apareceram na sua vida? Eles atravessam o seu trabalho também?

 

Em Guaíra tem muitas comunidades indígenas, estimam-se mais de mil indígenas lá. Quando eu trabalhava com educação, eu atuei bastante com indígenas dentro das escolas, e eles mal falavam português. Então tem toda essa questão que sempre foi vivenciada na minha cidade. Os indígenas não aceitam calados as violências praticadas, eles protestam, fecham pontes e estradas. Quando acontece algo assim, a cidade para. 

Aqui em Foz, vejo uma grande vulnerabilidade urbanística que atinge muito algumas comunidades. Uma vulnerabilidade, inclusive, que foi uma das questões que motivaram a realização do curso de defensores populares aqui na cidade. Foz tem uma questão urbanística muito grave. Exemplo disso é a atuação da Defensoria na Comunidade do Bubas, maior área de ocupação no Paraná* (saiba mais sobre o caso no fim da entrevista). Hoje nós vemos essa área sendo estruturada como um bairro mesmo, não mais como uma área de ocupação. Mas nem sempre é possível resolver os problemas de habitação que existem aqui. É uma cidade turística, então as pessoas vêm, passam por aqui e vão, não se estabelecem. Isso gera um problema relacionado à especulação imobiliária.

Ao mesmo tempo, há uma questão migratória muito forte. Muitas pessoas latinoamericanas vindo para o Brasil, Foz do Iguaçu sendo uma porta de entrada e abrigando essas pessoas, mas em que condições? Nesse sentido, o papel da Defensoria é essencial. Vejo isso todos os dias no meu trabalho, famílias imigrantes inteiras que precisam do nosso atendimento. Famílias de múltiplas nacionalidades. Até me identifico um pouco.

Vale dizer que o atendimento [da Defensoria] na Execução Penal também é muito necessário. Também trabalhamos com muitos casos de pessoas sem documentação, justamente por virem de outro país. Estamos sempre em contato com consulado, órgãos que oferecem assistência em casos assim. 

 

Você citou o curso de defensores populares, que já havia acontecido em Curitiba e Paranaguá antes de chegar até Foz. Como foi a realização desse projeto aí?

 

A ideia do curso de defensores populares veio de uma professora de Arquitetura e Urbanismo que trabalha com essas questões de ocupação dentro da cidade, a professora Cecília, juntamente com o IFPR [Instituto Federal do Paraná] aqui de Foz, que é a instituição que geralmente compra essa ideia dos defensores populares. Da Defensoria, éramos eu e o Vinicius [Santos de Santana, defensor público que atua na área Criminal]. Joguei para ele a ideia, ele logo adorou. E aí montamos o projeto para a realização do curso aqui em Foz, que era para ter sido realizado em 2020, mas precisou ser atrasado por causa da pandemia.

Inicialmente, a ideia era que o curso fosse voltado para jovens de comunidades que tivessem essa identificação com a militância, com a defesa de direitos, para que esse jovem levasse à sua comunidade o conhecimento que ele recebeu no curso. Mas depois resolvemos abrir para mais pessoas, o que foi muito interessante. Tínhamos estudantes do próprio IFPR, com uma condição [financeira] melhor, e adultos com as mais diversas profissões e origens, pessoas da comunidade LGBT, indígenas. Foi muito emocionante trabalhar com eles. A gente criou o curso com base na ementa já utilizada em Curitiba e Paranaguá, mas quando a gente se deparou com o público do curso a gente precisou adaptar algumas pautas, trazendo enfoques específicos da nossa região, do que a gente entendeu que era mais necessário ser trabalhado aqui. 

A formatura foi em maio do ano passado, foi um baita trabalho. Eu sou da área da educação, mas nunca tinha dado aula, não tinha exatamente a didática, e estava ali, ao lado de professores excelentíssimos do IFPR e da UNILA [Universidade Federal da Integração Latino-Americana].

 

Da experiência com os mutirões do projeto “Meu Nome, Meu Direito”, vemos que você tem um contato bastante forte com as pessoas que buscam a retificação de prenome e gênero com a ajuda da Defensoria. Como você se envolve com esses atendimentos?

 

Eu tenho mesmo uma facilidade de troca [com as pessoas atendidas pela Defensoria]. Gosto de acolher, de falar horizontalmente com as pessoas, nós temos um número muito grande de pessoas aqui em Foz que passaram pelo atendimento da Defensoria e fizeram a retificação de prenome e gênero. Como eu já tinha um contato anterior com a ONG Casa de Malhú [Associação de Travestis e Transexuais de Foz do Iguaçu], um envolvimento pelo meu interesse pessoal, isso se fez presente também no meu trabalho na Defensoria. Fui também Coordenadora do Núcleo de Diversidade de Gêneros e Sexualidades do Conselho Regional de Psicologia aqui em Foz [entre 2019 e 2022], um trabalho que me permitiu promover palestras, rodas de conversa e um contato forte com as pessoas da comunidade.

E aí, quando me encaminham, aqui na Defensoria, pessoas que querem fazer a retificação, eu acho que já se estabelece uma identificação comigo, justamente por eu também ser dessa comunidade. 

 

É a representatividade mesmo.

 

Sim, as pessoas se identificam e se sentem acolhidas dentro desse processo. Se você oferece um atendimento claro, acolhedor, um contato direto com a pessoa, fica muito mais fácil para ela passar por todos os procedimentos até a retificação. E eu comemoro junto quando eles conseguem realizar a retificação. Eu realmente fui criando e estabelecendo essa comunicação e relação com eles. 

 

Como você falou, você comemora junto com as pessoas e está ali próxima. E estar na Defensoria é também lidar com muita injustiça. A Defensoria muitas vezes começa a sua atuação no momento em que a pessoa sofreu uma injustiça. Em algum momento esse trabalho já te entristeceu? Durante esses anos de Defensoria, já teve aquele dia difícil, em que você se deparou com uma injustiça tamanha e não conseguiu intervir? 

 

Várias vezes. Nós temos muitas dificuldades em Foz. Como eu falei, é uma cidade muito conservadora. Às vezes, precisamos dizer o óbvio: que a mulher em situação de violência doméstica não deve ser revitimizada, que a criança deve ter acesso à escola. Nosso papel é acolher o usuário para que ele enxergue a Defensoria como proteção.

Tem pessoas com quem eu converso quase diariamente até que se tranquilize. E como psicóloga da Defensoria, eu vou criando essa relação de confiança com os usuários. Mas, infelizmente, os casos de derrota são bem comuns.

 

Você nos contou que ainda nova participava de saraus, lia muito sobre Freud e se descreveu como alguém “nerd”. Além disso, vimos que você escreve poesia. Nos conte um pouco sobre esse seu lado, sua afinidade com a escrita. 

 

Sobre escrever, eu gostava dessas questões filosóficas da vida e de refletir sempre sobre isso. Dentro da Psicologia, eu fui pro lado da Psicanálise, que traz também essas reflexões a respeito do ser e estar neste mundo. Que mundo é esse? Como é que a gente se entende aqui dentro desse caos interno e externo? Então é uma forma de eu pensar sobre as coisas, colocar um pouco pra fora e organizar um pouco o pensamento. Acho que na pandemia escrever também foi uma boa saída. E aí eu comecei a publicar alguma coisa ou outra, mas eu ainda sou bem tímida. 

Isso já vinha desde a adolescência. Eu tinha muitas questões naquela época. Lógico, eu sou de uma família privilegiada, minha mãe trabalhava, meu pai trabalhava e isso fez com que eu tivesse uma estrutura. Mas também tive muitas questões internas, passei por muitos problemas de infância. Minha analista falava que “só pode trabalhar com as sofrências da infância, quem também sofreu na infância”. Não que isso seja totalmente verdade, mas tem uma relação, a gente entende melhor que nem toda criança é feliz, né? 

Tive que lidar com várias questões que fizeram com que eu me questionasse sobre essa percepção de mundo, até mesmo pela minha própria identificação como uma mulher lésbica. Hoje já é um processo mais fácil. Mas na minha época, vindo de uma cidade do interior de 30 mil habitantes, não era fácil. Tanto que eu só saí mesmo do armário depois da faculdade, com 22 anos. Essas escritas, essas reflexões vêm daí, desse caos interno e externo que me atinge.

 

E o que você está lendo neste momento? 

 

Estou lendo agora um livro chamado “Niketche: uma história de poligamia”. Eu me entendo dentro da não-monogamia, então a gente estuda para não fazer besteira. Mas eu misturo e vou lendo várias coisas. Eu gosto muito de ler coisas da psicanálise também. O último livro que eu li foi da Geni Núñez, chamado “Descolonizando Afetos”.

 

Você falou que tem casos que só acontecem em Foz porque esses casos atravessam fronteiras, realidades e contextos. Eu queria que você contasse um caso que tenha te marcado muito e que você acha que simboliza um pouco a atuação da Defensoria em Foz.

 

Recentemente, eu pude acompanhar os desdobramentos de uma demanda de desacolhimento de duas crianças que me marcou muito. Era o caso de uma mulher cubana vítima de violência doméstica que, após uma situação de estresse pós-traumático, evadiu da casa de acolhimento em que estava e permaneceu em situação de rua. Ela estava muito fragilizada mentalmente. Desde 2021, quando tudo ocorreu, ela também passou por cárcere privado. Nessa situação, as crianças foram afastadas da mãe e ficaram com o pai, o agressor. Eles estavam há menos de um ano no Brasil, e o homem tinha mais facilidade com o português. Por esse e outros motivos, a mulher era muito dependente dele. 

Depois de muitos esforços e apoio psicológico, a mãe retornou para a casa de acolhimento. Enquanto Defensoria, conseguimos fazer com que a guarda das crianças ficasse com ela. Isso ocorreu em setembro do ano passado. A audiência [que determinou que as crianças deveriam ficar com a mãe] foi muito emocionante, os relatos em favor dela, afirmando que ela teria condições de ficar com as crianças.

Seguimos acompanhando. A mulher permanece sob tratamento, e o principal desejo dela, agora, é voltar para Cuba, para o seu país e para a sua família. O Brasil se tornou um lugar de traumas, de revitimizações e de disputas que ela quer deixar para trás. A própria língua se mostrou um trauma. Estamos em constante contato com o cônsul de Cuba para conseguirmos regularizar documentações pendentes, que são necessárias para a viagem. Hoje, com os filhos, ela quer continuar em frente. A conquista dela gerou uma comoção em toda a rede de proteção de Foz.

 

O que você vê para a frente na Defensoria, quais os desafios que a instituição tem pela frente? Qual recado você deixa pensando no futuro da Defensoria?

 

Como falei, passei por fases e fases aqui na Defensoria. Eu gosto bastante desse contato com a comunidade, estar em mutirão, por exemplo. E eu acho que a Defensoria está tomando um bom rumo, pensando inclusive também no III Concurso de Servidores. Acho que está todo mundo apostando todas as fichas nesse concurso, vejo que os servidores estão bem ansiosos para virem novos colegas e terem um pouco dessa troca. 

Eu estou numa fase esperançosa, acredito que a Defensoria vai trilhar caminhos ainda muito bonitos no Paraná. 

 


*Sobre a Comunidade do Bubas, em Foz do Iguaçu, o Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (NUFURB) da DPE-PR acompanha, atualmente, o desenvolvimento de um projeto urbanístico, por parte da prefeitura municipal, para a área. A realização do projeto foi acordada em abril de 2022, por meio de audiência intermediada pela Comissão de Conflitos do Tribunal de Justiça do Paraná. A Defensoria Pública atua na Comunidade do Bubas desde 2014.