Com a palavra, a Defensoria: Entrevista com Aline Valério Bastos, defensora pública em Cambé e coordenadora da Assessoria Especial para Assuntos do Interior da DPE-PR 15/12/2023 - 10:12

Não há como dissociar o trabalho da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) da palavra “acolhimento”, assim como não dá para separar o verbo “acolher” da entrevistada deste mês de dezembro da série “Com a Palavra, a Defensoria”. O leitor ou a leitora logo perceberá isso ao conhecer a história da defensora pública e coordenadora da Assessoria Especial para Assuntos do Interior da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), Aline Valério Bastos, 36 anos. “Acho que o acolhimento principal que eu trago para a minha atuação é sempre ouvir a história, tentar sentir como é estar na pele da pessoa que veio à Defensoria, e olhar para a história com os olhos dela”, disse.

Mãe do Pedro, de 2 anos, esposa do Fernando e tutora da cachorrinha Nicki, ela é natural de Poços de Caldas, no interior de Minas Gerais. Embora já esteja desde 2019 no Paraná, o sotaque e o gosto por uma boa prosa não disfarçam sua origem mineira. Mas não se deixe enganar pelo bom humor quase sempre presente. Quando o assunto é a Defensoria, o lado sério dela predomina. “Quem vem buscar a Defensoria são pessoas que foram excluídas e que, muitas vezes, não tiveram a oportunidade de serem ouvidas. A Defensoria tem essa função de entender a pessoa, o que ela representa, e requerer dos órgãos públicos e do sistema de Justiça que essa pessoa seja inserida na sociedade”, lembrou.  

Confira a história da defensora Aline Bastos no “Com a Palavra, a Defensoria” de dezembro:

Imagem que mostra a defensora pública Aline Bastos em três momentos diferentes em sua vida, com o marido, durante a posse, com ele e o filho Pedro, e com suas colegas defensoras.

Para você, quem é a Aline?

Sou mãe do Pedro, casada com o Fernando, sou mineira, defensora pública aqui no Paraná desde 2019, mas já fui defensora pública na Bahia. Trabalhei também no município de Poços de Caldas (MG), minha terra natal. Comecei a trabalhar com 18 anos, fiz faculdade em Poços de Caldas. Sou uma pessoa espontânea e gosto muito de trabalhar. Sou bastante acolhedora com tudo, bastante feliz e animada. Sou casada há nove anos. Meu marido é também da área de Direito, mas ele é servidor público do TJ de Minas.

Como decidiu ser defensora? 

Na faculdade, tive o privilégio de ter um professor que era defensor público. Ele deu um norte para a minha monografia. Eu tive aula de Direito Penal com ele durante um ano. Achava interessante o tema, mas o professor trazia um pouco mais sobre as dificuldades da Defensoria Pública do que um olhar apaixonado que, às vezes, a gente vê. Além disso, sempre me encantou no Direito a proteção aos direitos humanos, às vulnerabilidades. Mas eu não fazia concurso só para a Defensoria. Queria ser aprovada no concurso de delegada de Polícia, também. Mas, quando comecei a estudar para a Defensoria, vi que se encaixava muito mais no meu perfil. A minha formação como pessoa era exatamente o que a Defensoria Pública propõe. Consegui aprovação em alguns estados depois de várias tentativas e muitas frustrações. A minha experiência na Bahia foi maravilhosa. A Defensoria Pública na Bahia é enorme. Não só pelo tamanho do Estado, mas pelo que a Defensoria representa no Estado. 

E por que mudou de Defensoria? 

Tinha uma questão de proximidade com Minas. Embora a Bahia seja vizinha a Minas, eu sou do sul do estado. Eu estava na comarca de Teixeira de Freitas, que é o extremo sul da Bahia. Tinha uma distância muito grande até Poços, de 1.700 quilômetros. E aí a minha expectativa era vir para o Paraná e ficar mais ao norte do estado, como estou hoje em Londrina. Hoje estou a 500 quilômetros da casa da minha família e com uma estrada boa até lá. Quando cheguei aqui, tive a certeza de que eu estava no lugar certo, construindo uma nova Defensoria. 

Você mencionou sua monografia no começo da explicação sobre você. Ela era sobre o quê?

Era sobre a Lei Maria da Penha. Naquele momento, a minha visão era ainda sem um posicionamento. A minha ideia era avaliar se seria possível utilizar a Lei Maria da Penha quando a vítima se identificasse com o gênero masculino. A lei não se prendia só à questão de gênero, mas pensava muito em relações entre familiares. Por exemplo, pais e filhos. Mas, na conclusão da minha pesquisa, ficou claro que isso não era possível. A LMP é para proteger a mulher da violência.  

Você se considera uma militante feminista? 

Ainda tenho muito a aprender. Sou uma pessoa muito curiosa sobre o tema, mas, especialmente, depois da maternidade, acho que a minha luta é a da mulher, da mãe dentro do sistema [de Justiça]. Entender que há diferenças, há dificuldades que são enfrentadas. Por isso, a gente precisa ter vozes que possam falar pelas mulheres.

Quando você se tornou mãe, passou a trazer mais essas lutas para a sua vida pessoal?

Sem dúvidas. No meu esforço diário com o meu filho, que é um menino novo, já tento imprimir na educação dele o “respeitar”. A palavra de ordem sobre a qual eu e meu marido conversamos muito é ensinar ao Pedro o respeito. Respeito para com as pessoas em geral e, quando observar especialmente uma mulher, há a necessidade de respeitar e entender o lugar dela na sociedade. 

E isso eu também trago para a minha atuação profissional. Hoje, quando eu vou fazer uma audiência [da área] de Família, por exemplo, consigo também entender muitas vezes as dificuldades dessas mães. 

Você comentou bastante sobre a necessidade do respeito às mulheres, mas como enfrentou o machismo durante a sua vida no interior de Minas Gerais?

A gente só consegue entender o ponto de enfrentamento que vivenciou quando se apropria do assunto. Então, quando você consegue entender que o machismo também está em pequenas condutas do dia a dia, você revê a sua vida e pensa: “eu enfrentei isso quando eu era adolescente”. Minas é um estado tradicional, o interior é um pouco mais conservador. Eu olho para o passado e vejo que foram muitos os enfrentamentos, mas que, naquele momento, eu não tive esse esclarecimento, esse conhecimento para enfrentar [o machismo] da forma como hoje eu enfrentaria.

A maturidade ajuda, não é? Mas conhecer o assunto também é muito importante. Antes de falar com você, eu estava conversando com a associação [de servidores e servidoras da Defensoria, a ASSEDEPAR] que vai fazer cursos de capacitação para servidores [da Defensoria] para falar de temas como machismo, racismo, e nós vamos trazer os estagiários e as estagiárias para discutir isso. 

Você lembra de algum episódio que te marcou? 

Na faculdade, a gente via com outro olhar aqueles assédios praticados pelos professores. Eu achava estranho, recusava qualquer tipo de investida, mas parava por aí. Hoje, eu acho necessário levar isso adiante, denunciar, discutir, falar mesmo sobre o que não se deve fazer. 

Antes de ser procuradora do município [de Poços de Caldas], ocupei um cargo de supervisão, e eu chefiava uma equipe grande, mais ou menos 30 profissionais. Olhando para o passado, vejo que havia um desrespeito. Sabia que isso era um desrespeito, mas eu tentava abordar de outras formas, e, talvez, hoje eu seria mais incisiva em expressar que aquilo era o machismo estrutural. 

Como foi sua infância em Poços?

Eu tenho meu pai e minha mãe. Eles são separados, mas foram casados até a minha vida adulta. Tenho duas irmãs, que são minhas melhores amigas. Até hoje sinto muita falta delas, porque estão em Minas, ainda. Uma delas é arquiteta e a outra é advogada. Eu tive uma infância muito boa. O interior nos dá esse privilégio, de viver com bastante liberdade, brincar na rua, andar de bicicleta. E estudava em um colégio que estimulava muito a questão dos esportes, então a gente saía da escola e queria ficar na quadra poliesportiva, porque era um lugar de lazer. A família dos meus pais é de uma cidade pequenininha chamada Paraguaçu. Eu ia muito para a casa dos meus avós lá. Havia extrema liberdade. Gostava de andar de patins, eu e minhas amigas saíamos pelas ruas sozinhas, era muito bom.

O que você trouxe da vida no interior para sua profissão? 

Minas tem isso. É muito acolhedora. Esse é o meu perfil. Vejo isso na minha família, nos meus amigos, nas minhas amigas. Não existe uma reunião, um encontro com eles, sem tomar um cafezinho, sentar, sem entrar em casa. 

Você falou que tinha um incentivo para fazer esporte na infância. Hoje você faz esporte aqui? 

Faço. Eu gosto demais. É meu momento. No dia, tem um momento em que sou eu comigo mesma. É a minha hora de atividade física. Costumo ir muito cedo para a academia. Sou da turma da madrugada. Chego antes das 6h. Eu faço musculação, mas gosto de fazer boxe, gosto de correr. Sou uma pessoa muito ansiosa. A atividade física me ajuda muito nisso. Faço praticamente todo dia. 

Como é o dia a dia com o seu filho? 

O Pedro é uma criança com muita energia, o que é normal, porque o pai dele e eu também temos muita. E a nossa cachorrinha também. Ouço muito que sou um pouco criança também com ele. Brinco muito. Não sei jogar futebol, mas jogo mesmo assim. Todo dia a gente acorda cedo, vai para um espaço, já começamos a jogar bola, jogar basquete, jogar vôlei. Ele também gosta muito de esporte. Ele já acorda com a bola embaixo do braço. 

Quanto ao seu trabalho na Defensoria, como foi a mudança para coordenar a Assessoria Especial para Assuntos do Interior? 

Foi um convite que eu recebi do André [Ribeiro Giamberardino, defensor público-geral do Paraná]. Fiquei muito emocionada quando recebi. Deixei claro que a minha prioridade é o Pedro. Expliquei que eu não conseguiria, por exemplo, me deslocar com tanta facilidade para as sedes [da DPE-PR]. O André me disse que, se ele não aceitasse isso, seria uma incoerência muito grande da Defensoria. Afinal, não é possível deixar de incluir alguém justamente por ser mãe.

É um desafio muito grande. O André queria que eu estivesse ali e entendia que meu perfil era importante para isso, para unir o interior. Em Curitiba, se [a coordenação de] sede precisar de qualquer coisa, ela pode ir até a sede administrativa e pedir computador, internet ou outra necessidade. Aqui no interior, não é assim. Existem burocracias, que são normais em uma administração. E a ideia da assessoria é justamente ajudar nesse diálogo. Penso que tem dado certo. Acho que tem muita coisa para melhorar, mas temos boas conquistas até agora.

Hoje qual é o maior desafio da assessoria do interior, na sua opinião? 

Melhorar ainda mais essa comunicação e esse diálogo, entre o interior e a capital, e unificá-los cada vez mais, respeitando a burocracia que é necessária. 

O quanto você acha que ser acolhedora influencia no trabalho de atender o usuário e a usuária da instituição? 

Acho que acolher também é se colocar no lugar do outro, com o olhar do outro. Quando você olha para um processo, por exemplo, de uma medida de proteção da [área da] Infância, você pode pensar que é indefensável. Quando você senta com aquela parte, conversa e ouve a história dela, a versão dela, isso pode mudar a sua visão sobre o processo.

Tive uma experiência com uma estagiária de pós-graduação nesses últimos meses. Eu a levei para uma audiência de um caso da Infância. Depois da audiência, ela me disse: “não era nada do que eu pensava”. Quem vem buscar a Defensoria são pessoas que foram excluídas e que, muitas vezes, não tiveram a oportunidade de serem ouvidas. A Defensoria tem essa função de entender a pessoa, o que ela representa, e requerer dos órgãos públicos e do sistema de Justiça que essa pessoa seja inserida na sociedade. 

Acho que o acolhimento principal que eu trago para a minha atuação é sempre ouvir a história, tentar sentir como é estar na pele da pessoa que veio à Defensoria, e olhar para a história com os olhos dela. É fundamental trazer para o processo quem ela realmente é. 

Com quais áreas de atuação você se identifica mais? 

Sempre gostei muito de Criminal, mas hoje a Infância é uma área que realmente me toca muito. Eu também me surpreendi muito com Família. Quando você entra na história daquela família atendida, vê que aquilo nunca é só um processo de divórcio, não é só um pedido de alimentos. É muito mais. O pulo do gato da Defensoria é também ter a multidisciplinaridade, com o atendimento de um psicólogo ou uma assistente social, por exemplo, que ajuda muito no trabalho da instituição. É difícil escolher. Gosto muito de Infância e sou uma apaixonada pela área de Família.

No atendimento, é possível dizer que muitas histórias se repitam, mas a Defensoria deve sempre tratá-las com a atenção e com o cuidado que cada caso exige. Como é esse trabalho?

Esse é um grande desafio e um esforço diário. A cada atendimento, a cada audiência, é preciso entender que não é só mais um caso. É realmente necessário ouvir aquela pessoa de verdade. Sair de uma audiência, tentar se desligar daquela história e se conectar à próxima. A história que aquela pessoa traz é a da vida dela. Muitas vezes, a pessoa lutou muito até chegar aqui. Você não pode tratar o caso dela como algo banal. É a decisão de vida que aquela pessoa tomou. É se colocar no lugar dela. Tento imprimir na minha profissão. 

Você parece ser uma pessoa muito positiva. O que que te deixa triste?

As injustiças. É clichê. Eu sei. Os desrespeitos me abalam muito. Ouvir pessoas, por exemplo, destratando outras, racismo, atos de violência contra criança. Isso é muito triste. 

E qual é o seu hobby hoje? 

As atividades físicas, como eu falei, e brincar com o meu filho. Eu gosto muito de ler, também. Gosto muito de crônica. Gosto muito do Luís Fernando Veríssimo, da Tati Bernardi. Sou uma grande fã de Machado de Assis. Tenho um amor por ele porque o meu pai é um leitor contumaz de Machado. Sempre que eu tinha alguma aula de literatura na escola, ele relia o livro e discutia com a gente. Gostávamos muito de ler juntos. Também gosto muito de viajar e de comer. Comer acho que é o melhor hobby. 

Qual foi o último livro que você leu?

“Tudo é rio”, da Carla Madeira. Amei, devorei o livro. Li também “Não Fossem As Sílabas Do Sábado”, da Mariana Salomão, defensora pública de São Paulo. Maravilhoso.

Você falou do seu pai. Qual era a profissão dele? 

Advogado.

Você se inspirou nele?

Eu não tinha certeza do Direito. Pensei em fazer outras coisas, como Odontologia. Vi no meu pai e na minha mãe, que também é advogada, uma prática muito bonita do Direito. Via minha mãe, que tinha acabado de se formar, advogando para pessoas muito simples. Ela tinha um escritório muito perto do terminal rodoviário. Acho que nesse ponto ela pode ter me influenciado fortemente. Ela era da área do Direito de Família, e meu pai, Trabalhista.

Quais são as diferenças e semelhanças dos lados pessoal e profissional da Aline?

A semelhança é esse olhar de respeito com todo mundo no meu dia a dia. Eu lembro quando era muito novinha, na escola, ganhei um concurso de redação que falava sobre solidariedade. É uma característica minha, mesmo, e vejo isso muito claramente na minha profissão. É inerente à atuação da Defensoria, não se separa. Não acho que estou fazendo a mais, acho que é isso mesmo que tem que ser feito. 

A diferença é que, apesar da leveza com que eu levo as coisas, tentando brincar com todo mundo, inclusive com os assistidos, tenho que ter no dia a dia um pouco mais de seriedade, até pelos temas com que trabalho.

Como é sua relação com os usuários e usuárias da Defensoria?

Com alguns assistidos de Cornélio [Procópio], onde eu atuei antes, eu tenho contato até hoje. Uma, em especial, só queria conversar comigo, mesmo na minha licença-maternidade. Acabo criando muito vínculo, mesmo, porque eu gosto. São pessoas, elas não podem ser separadas em potinhos de processos.