Com a Palavra, a Defensoria: Sara de Jesus Araújo, assessora jurídica em Maringá 29/11/2024 - 16:18
Aos 14 anos, enquanto limpava um dos quartos onde trabalhava como empregada doméstica, Sara de Jesus Araújo se depara com uma estante de livros que muda sua vida. Um deles principalmente. Era Cadeira de Balanço, de Carlos Drummond de Andrade. Nele, Sara encontrou não apenas o primeiro prazer com a leitura, mas a possibilidade de transformar sua realidade em Beiru, um dos bairros mais populosos da periferia de Salvador. Filha de mãe solo, ambas precisaram deixar a escola quando criança. No entanto, os livros e, por consequência, a educação se mostraram estratégias de sobrevivência e busca por direitos. Por direito a ter direitos, segundo ela. Hoje, aos 47 anos, Sara é parte da estratégia das pessoas que buscam acesso à Justiça por meio da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR).
A baiana é assessora jurídica da instituição desde 2016. Em Maringá, atua há três anos. Ocupa também uma vaga no Comitê Gestor da Política de Prevenção e Enfrentamento do Racismo, um marco na atuação da DPE-PR na pauta antirracista. Nas discussões sobre o trabalho institucional, sua colaboração nasce do atendimento ao público, dos estudos sobre o tema e da discriminação que ela própria vive e viveu ao longo do tempo. Sara esclarece que não gosta de falar sobre questões raciais, mas é uma necessidade. É um assunto que se impõe.
Ela gosta mesmo é de degustação, principalmente de cerveja, em que tem formação de sommelier - uma especialização profissional no produto. Hoje trabalha e discute cerveja em eventos e na internet. Mas sua versão sommelier não se separa da versão ativista. Ela lembra que tudo é política e luta por direitos: inclusive comer e beber.
Sara de Jesus Araújo é a entrevistada de novembro do projeto Com a Palavra, a Defensoria.
Nesta quinta-feira (21), você não está em Maringá, mas em São Paulo. Viagem a trabalho, para ver a família ou outro motivo?
Tenho projetos em São Paulo relacionados a literatura e cerveja. Gosto bastante de juntar um pouquinho esses dois universos. Resolvi fazer a viagem agora para participar de alguns desses eventos, utilizando os dias em que trabalhei como mesária nas eleições municipais deste ano.
Você sempre trabalha nas eleições?
Sempre, desde os 18 anos. Gosto muito de participar e contribuir com o processo democrático como um todo.
Na sua percepção, atuar na Defensoria Pública é também uma forma de contribuir com o processo democrático?
Com certeza. Na Defensoria, a gente trabalha com educação em direitos, por exemplo. Educação em direitos é reafirmar a Democracia, educar as pessoas para a democracia. A Defensoria Pública deveria ser a primeira instituição a ser chamada para opinar dentro do Estado Democrático de Direito. Ela nasce da população, tem uma voz democrática e um papel essencial ao propor um diálogo de paz, de respeito ao outro. É a instituição que diz o tempo todo que o direito de uma pessoa precisa se comunicar com o direito da outra pessoa. Antes de me apaixonar pela Defensoria, a Justiça Eleitoral era o que mais me interessava. Mas a Defensoria deixou esse sentimento para trás.
Quando você teve contato com a Defensoria?
Foi no estágio de graduação, na Defensoria Pública de São Paulo. Foi uma alegria voltar como servidora, no caso, aqui no Paraná. Sou tão apaixonada que consegui transmitir isso para o meu filho. Hoje ele é estagiário na Defensoria.
E o que sua mãe te transmitiu?
A gramática e os valores que ela aprendeu, que eram aprender a trabalhar desde muito cedo. Ela, empregada doméstica, me ensinou o que era necessário para que eu também fosse empregada doméstica. Lavar, passar, cozinhar. No início, tivemos uma relação muito difícil, porque, para ela, estudar significa uma tentativa minha de ser diferente dela. Hoje, não. Hoje ela tem orgulho por ter uma filha advogada, um neto advogado. Eu vim de uma família muito precarizada, e consegui incentivar meus irmãos a estudarem também. Pude abrir as portas em casa para o estudo.
Conte como foi esse processo de enxergar uma oportunidade real de transformação na educação.
Depois de ler os livros do Carlos Drummond de Andrade, fui abraçada pelo Machado de Assis e, principalmente, pelo Lima Barreto. Ele foi um portal para mim. É quando eu começo a querer estudar. Nessa época, de 14 para 15 anos, eu não poderia fazer supletivo, porque só tinha durante a noite. Virou uma briga pessoal para conseguir.
A proprietária da casa onde eu morava era professora. Eu vivia batendo a porta do diretor da escola dela para deixar eu estudar. Então, pela insistência, tive a chance de fazer uma prova para entrar. Eles não imaginavam que eu era muito obstinada. Pra mim, que bati na porta das pessoas para pedir comida, a obstinação de viver sempre existiu.
Estudei dias e dias, depois do trabalho, principalmente português e matemática. Passei na prova e pude fazer o supletivo. Ajudou também o fato de que sempre fui curiosa, interessada pelas coisas. Em um dos lugares que morei, meu apelido era Glória Maria [jornalista brasileira]. Diziam que eu sabia de tudo que acontecia.
Foi um marco na sua trajetória, voltar a estudar mudou para sempre o seu caminho, correto?
Eu me emociono até de lembrar. A educação salvou a minha vida. Pensando no lugar de onde eu vim, uma periferia com muita violência, tive a sorte, ou talvez a vantagem, de ser salva pela educação. A literatura me salvou, Lima Barreto me educou. E quem tem essa educação adquire muitas estratégias para a defesa das pessoas e de seus direitos. Você entende os mecanismos para tornar o direito concreto e tem a possibilidade de aplicar isso na vida de outras pessoas. Quem vem de um lugar de tanta violação de direitos não quer nunca que o outro seja violado.
Lima Barreto foi alguém que contribuiu muito com o início do debate sobre questões raciais no Brasil. Foi também a educação que fez você começar a pensar sobre raça?
Não, na verdade, eu sempre soube que eu era uma criança negra. O racismo sempre esteve presente na minha infância, desde os pequenos comentários sobre meu cabelo, por exemplo. Experiências que nem gosto de lembrar. Mas com certeza eu aprendi muito depois. Em sua época, Lima antecipou o debate das questões raciais, que era rejeitado naquela época e continua rejeitado até hoje.
Tem gente que nega a presença do racismo no lugar onde vive, em sua cidade. Mas até hoje não sei o que é estar em lugar onde não existe racismo. Essa não é a realidade do país onde uma pessoa negra é morta a cada 12 minutos [dado da pesquisa Atlas da Violência 2024].
E como você vê a atuação do sistema de Justiça em relação ao racismo?
Temos avanços importantes. Ontem mesmo [na véspera do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra] o Conselho Nacional de Justiça lançou uma cartilha de recomendação com parâmetros sobre racialização no campo jurídico. Infelizmente, ainda existe um viés muito racializado no sistema de Justiça.
Trabalhando na área Criminal, fazendo defesa de pessoas acusadas de crimes, vi situações em que isso ficou escancarado. Vi pessoas negras sendo tratadas como traficantes por porte de maconha sob as mesmas condições em que pessoas brancas foram consideradas apenas usuárias.
Nós falamos agora há pouco sobre democracia. A democracia ainda não chegou para o corpo negro.
Desde 2022, a Defensoria Pública do Paraná tem o Comitê Gestor da Política de Prevenção e Enfrentamento do Racismo. Avanços importantes foram conquistados e já reconhecidos nacionalmente. O que esse tempo de trabalho já mostrou sobre a necessidade de a instituição discutir as questões raciais?
Mostrou que é uma luta diária. Quando falamos de racismo, não é modismo. Também não é algo que diz respeito apenas às pessoas negras, mas, sim, a toda a sociedade brasileira. Quando uma pessoa é violada dentro de uma sociedade, toda a sociedade é violada. Toda a sociedade perde.
Eu, inclusive, não me sinto confortável para falar sobre as questões raciais. Porque é algo que me atravessa tanto, doi tanto, que não me agrada falar. Mas é necessário. Se eu não falo, meu direito vai ser cerceado o tempo todo.
Na prática, de que maneira isso acontece?
Tive uma experiência neste ano que explica bem. No Criminal, antes de eu passar para a área de Família, eu e a equipe de assessoria jurídica, ainda que pequena, sempre fizemos questão de ouvir o usuário da instituição, não trabalhar só lendo o processo. Em uma ocasião, quando recebi a pessoa, ela perguntou se eu era responsável pelo atendimento. E se recusou a ser atendida por mim, já que era uma pessoa loira, branca e de olhos azuis.
Era uma pessoa que estava em cárcere, de baixa renda, mas sabia o capital simbólico que tinha. A cor. Como ela não conseguiu ter um advogado particular, o processo voltou para a Defensoria mesmo contra sua vontade. E nós fizemos a defesa.
São experiências individuais que podem ser debatidas para melhorar as políticas de toda a instituição na pauta antirracista. Tanto para o público quanto para servidores e servidoras.
Sem dúvida. Espero que a instituição acolha e abrace as questões raciais, porque isso significa lutar por direitos e fortalecer toda a Defensoria Pública. É lutar para que a outra pessoa tenha uma vida plena, com dignidade e a possibilidade de acessar direitos.
E quando a sommelieria entrou na sua vida?
Em 2018. Sempre gostei de cozinhar e sou apaixonada pela alimentação. Quando descobri que a cerveja artesanal se faz na cozinha, quis entender mais sobre ela, desde o processo de produção até a harmonização com a comida.
Você tem um ativismo político claro. Isso aparece também na sua relação com a alimentação?
É muito louco, porque a sommeliaria se tornou também lugar para adentrar o campo das questões raciais. Hoje tenho um perfil nas redes sociais em que eu consegui juntar cerveja, comida e literatura, abordando muito as relações raciais. Indicando autores e autoras negras.
Mas isso foi antes de me especializar. Como sempre gostei de me aperfeiçoar, pouco tempo depois fiz uma rifa e juntei dinheiro para fazer o curso de sommelier. Acabei me apaixonando e usando a cerveja neste campo da pedagogia mesmo, dentro do letramento racial.
A cerveja nasceu no continente africano. Foi a oportunidade que eu tive para falar sobre isso, de reivindicar esse espaço também.