Com a Palavra, a Defensoria: Fernanda Correa, assessora jurídica em Ponta Grossa 29/05/2024 - 09:22
A vida de Fernanda Correa, 40 anos, é uma estrada de fé, como ela mesma define: seja nos desafios pessoais que enfrentou desde criança, seja na missão profissional que assumiu na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR). Assessora jurídica desde 2015 na sede de Ponta Grossa, nos campos gerais, sua trajetória inclui um despejo junto da família na adolescência, a experiência de enfrentar a discriminação junto com um irmão trans e um tratamento de câncer de mama a partir de 2018. Tudo isso precisaria ter um propósito - servir quem mais precisa, dentro ou fora da Defensoria Pública, segundo ela.
Atualmente de licença médica, a assessora conseguiu uma adequação de função na sua rotina de trabalho para continuar sua atuação na DPE-PR sem precisar digitar em um computador. Isso porque, devido ao tratamento de saúde, ela perdeu parte dos movimentos manuais. No entanto, a nova realidade deu a ela mais liberdade para trabalhar em prol de usuários e usuárias que buscam o serviço da instituição e, até mesmo, de toda a equipe de defensores(as) e servidores(as) de Ponta Grossa. Hoje, além da atuação jurídica, ela promove iniciativas para melhorar o ambiente de trabalho.
Enquanto o pai pôde estudar apenas até o primeiro grau do ensino fundamental, Fernanda, filha mais nova de três, foi a primeira da família a concluir o ensino superior. Sempre que possível, ela também se dedica ao seu lado musical, em apresentações em palcos da cidade e, principalmente, em projetos sociais voltados ao combate ao câncer. Um processo que é terapêutico, ao mesmo tempo, para ela e para o público.
Fernanda é a entrevistada deste mês do projeto “Com a Palavra, a Defensoria”.
Quais eram os seus interesses na época em que você ingressou no curso de Direito?
Eu sempre gostei de pensar sobre o viés de ajudar as pessoas de alguma forma, de olhar pelo lado da vulnerabilidade, não só do ponto de vista jurídico. Depois que eu me formei, na Universidade Estadual de Ponta Grossa, pude advogar e trabalhar em várias instituições do sistema de Justiça da cidade, como o Tribunal de Justiça e o Ministério Público. Foi muito bom poder conhecer as visões desses agentes da Justiça e poder chegar, na Defensoria, ao que acredito que reflete muito dessa vontade e desse sentimento que sempre tive na vida.
Desde cedo, eu também tenho uma ligação muito forte com as artes, sou cantora e locutora também. Trabalhei uma época em rádios aqui da cidade, também fiz teatro. Inclusive, quando fiz o meu primeiro vestibular, ainda no terceiro ano [do ensino médio], prestei para Jornalismo. Justamente por gostar da comunicação, de falar e de interpretar. Sempre admirei muito a profissão, mas não passei nesse vestibular. Acabei indo para o Direito porque, mesmo com esses vários interesses dentro de mim, sempre tive essa questão da justiça pulsando, principalmente porque eu venho de uma família humilde.
Como era a relação com a sua família?
Meus pais vieram de Jaguariaíva, no norte do Paraná. Eu nasci já em Ponta Grossa, e, como muitas famílias, sofri na pele muita coisa, muita injustiça, muita desigualdade. Inclusive, uma situação que me marcou muito foi quando eu tinha 15 anos e a gente, eu, meus irmãos e meus pais, perdemos um apartamento porque meu pai ficou desempregado por três anos e não pode pagar as parcelas do condomínio. 10 anos pagando as parcelas e perdemos o apartamento, foi colocado para leilão. Na época, por ser adolescente, não tinha noção do que aquilo representava, e meu pai, humilde, também não pôde contratar um bom advogado. Foi um constrangimento grande, ter que pegar as coisas e ir embora daquela forma, com uma mão na frente e outra atrás.
Era uma situação extrema. Entendi depois que não poderia ter acontecido daquela forma. Ou comia, ou pagava a conta. Uma orientação jurídica adequada, profissionais determinados que fossem atrás, poderiam ter evitado que perdêssemos tudo. Isso me marcou muito.
Minha infância e minha adolescência, graças a Deus, foram muito boas, apesar dessa experiência. A história que meus pais contam é sempre nesse sentido de vulnerabilidade. Minha mãe não tinha nem luz em casa. Tanto minha mãe quanto meu pai foram abandonados pelos pais e eles foram criados só pelas avós e com muita dificuldade. Mas Graças a Deus eu pude ter meus dois pais ali. Eles sempre lutaram da forma que eles podiam. Nunca faltou o básico.
Como essas experiências moldaram a sua visão de mundo?
Eu acho que a vida é uma escola mesmo. Ela é uma escola porque a gente quando passa pelas situações às vezes não entende muito, às vezes o porquê é na verdade o ‘para que’. Todas as dificuldades, mudanças e transformações que passei na vida me permitiram estar na Defensoria Pública para poder fazer algo a mais. Hoje, posso servir melhor a minha missão aqui. Hoje estou olhando para trás e vejo tudo o que passei, percebo realmente que tudo serviu demais para eu ter o que tenho: sentimentos, experiência, visão e essa empatia maior que tenho por ter vivenciado tudo aquilo. Não que outra pessoa que não tenha tido as mesmas experiências não possa sentir também a dor do outro. Mas claro que por ter vivenciado a gente entende, sabe como a pessoa está se sentindo. Sabe como é difícil perder um bem, como é difícil não conseguir o direito e ver que, muitas vezes, poderia ter sido diferente se a informação tivesse chegado. Então, ao mesmo tempo, é essa questão de empatia e sentir a dor do outro um pouco mais próxima. É também satisfatório ver que hoje eu posso ajudar a evitar isso.
E como é sua relação com seus irmãos?
Eu tenho dois irmãos que são por parte de pai e outros dois pela minha mãe e pai. Infelizmente, um dos meus irmãos faleceu no ano passado, vítima de acidente de carro. Agora nós somos quatro. Sempre foi uma relação tranquila. Um dos meus irmãos, inclusive, é um homem trans. Pude conviver de perto com ele nesse momento. Ele é mais velho, é irmão por parte de pai. Faz dois anos que mudou o nome. Ele também retificou os documentos e fez o acompanhamento médico para tratamento hormonal.
Essa experiência foi marcante para você e sua família?
Infelizmente, ainda existe muito preconceito, muita dificuldade e eu percebi isso estando ao lado dele. Meu irmão se reconheceu desde adolescente como homossexual. Em Jaguariaíva, uma cidade pequena, ele sempre enfrentou dificuldades, anos depois ele contou sobre situações de preconceito que viveu lá e aqui em Ponta Grossa. Nós, graças a Deus, soubemos respeitar e lidar. Acima de tudo, sempre buscamos acolher. Se muitas vezes as pessoas acham difícil se adaptar quando a pessoa muda de nome, por exemplo, imagina para a pessoa que está passando por essa mudança? É um processo para todo mundo, mas sem nunca deixar de respeitar.
Sei que hoje você está de licença médica. Pode falar um pouco sobre como é o seu dia a dia hoje?
Em 2018, eu descobri um câncer de mama e, desde então, sigo em tratamento. Às vezes melhora, mas volta. Já é a quinta vez que eu estou fazendo quimioterapia, mas não me entrego. Então, minha rotina tem sido cuidar da saúde com prioridade, porque é um tratamento pesado. Já fiquei muitos períodos bem debilitada, sem cabelo, fiz várias cirurgias e fiquei com sequelas no meu braço esquerdo. Para poder trabalhar, eu tive uma adequação de função por não conseguir exercer a digitação como eu fazia antes, justamente pelo tratamento, mas continuei atendendo e ajudando a fazer os projetos na Defensoria. Estou bem empolgada com essa parte. No atendimento, ajudo os estagiários a fazer os acordos, mas eu estou nessa fase mais stand by, de ficar cuidando mesmo da saúde. Mas não paro. Eu procuro não parar porque se a gente focar na doença, a gente piora. Eu tento fazer o tratamento sem deixar de viver.
O que representou para você essa nova possibilidade de trabalho a partir da adequação de função?
Depois da pandemia, a gente ficou trabalhando de casa. Todo o tempo a gente precisa digitar as ações e os prazos, fazer as minutas. Eu comecei a sentir bastante dificuldade, mas depois de 2021, quando fiz outro tratamento, eu tive uma sequela mais grave, que foi a lesão do plexo braquial [conjunto de nervos da medula espinhal]. Eu perdi o movimento do braço esquerdo. Hoje em dia, eu recuperei o movimento parcialmente, mas ficaram reflexos dessas sequelas na mão e nos dedos. Aí o perito falou que teria que me readaptar.
Não foi uma mudança tão grande porque eu continuo fazendo a assessoria dos Defensores, mas de uma forma que não preciso usar o computador muito tempo, não fique especificamente digitando e elaborando minutas. Faço os atendimentos, acolho as pessoas, converso com os estagiários que, às vezes, estão começando, ensino e explico sobre a atuação da Defensoria. Sempre gostei muito de projetos e quando eu voltei, pensei: “poxa, vou começar a fazer coisas que melhorem o nosso ambiente de trabalho”.
Eu estou de licença, mas eu levei, por exemplo, uma aula de yoga laboral para os servidores. A minha ideia era levar uma vez por mês um profissional fisioterapeuta para falar sobre ergonomia, ou outros profissionais que falem sobre educação ambiental, educação financeira, e outros temas que ajudassem os servidores para se sentirem melhor no ambiente de trabalho. Também fiz um manual de atendimento e coloquei todas as áreas de atendimento em Ponta Grossa, os defensores e as defensoras responsáveis, a coordenação da sede e informações sobre o trabalho da equipe multidisciplinar.
E a recepção da equipe também foi boa nesse seu retorno?
Graças a Deus, os defensores e as defensoras sempre foram muito, muito gente fina comigo. Entenderam muito bem, sempre me apoiaram, dando força. Isso me deixou sempre, de certa forma, tranquila, porque a gente sabe que tem que produzir, mas somos humanos acima de tudo. Não nego que eu me preocupava muito. O medo de precisar me aposentar me deixava muito para baixo, de eu não ter mais condições físicas ou psicológicas para poder trabalhar. Isso freava muito minhas esperanças de poder continuar pensando em grandes coisas, grandes projetos.
Quando teve essa possibilidade de adequação, a própria equipe viu também uma oportunidade para que eu pudesse contribuir muito mais com o todo, mais até do que antes. A cada retorno após um período de afastamento e tratamento do câncer, eu tinha medo de não dar conta, de ficar muito cansada, não poder mais desempenhar a minha função mesmo em uma nova realidade. E nesse meio tempo, eu fui provocada a pensar mais sobre o significado da palavra servir. Entendi que em cada parte do trabalho da Defensoria, seja na elaboração de um ofício ou ajudando a equipe, eu poderia sempre tentar servir melhor, tornar aquilo um propósito de vida, ainda que seja cansativo e pesado. Então, esse pensamento passou a me motivar a sempre voltar querendo fazer mais, mesmo com cada vez mais dificuldades.
Eu sei que você também é cantora. É uma herança de família?
Minha mãe cantava desde os cinco aninhos de idade com meu avô, que tocava acordeão, lá em Jaguariaíva. Quando meus pais começaram a namorar, na adolescência, eles tocavam na mesma bandinha da escola. Meu pai tocava contrabaixo e ela cantava. Eu cresci nesse ambiente. Desde criança, eu cantava em teatros na escola. Adorava transformar trabalhos da escola em música, escrevia músicas sobre meio ambiente, fazia rap sobre os temas.
Depois, passei a me apresentar em barzinhos da cidade e participar de ações sociais, cantar em asilos, até minha mãe e meu pai se apresentavam juntos, mesmo com quase 80 anos, músicas de antigamente. A música funciona como uma terapia mesmo para mim.
Às vezes, também canto em ações de uma rede feminina de combate ao câncer aqui em Ponta Grossa. No meu primeiro ano de tratamento, eu tive a experiência de cantar para as pessoas durante as sessões de quimioterapia. Lembro muito bem, era véspera de Natal, eu estava bem carequinha, com minha mãe, meu irmão, e todo mundo cantando junto canções de natal para as pessoas que faziam quimioterapia.
Você disse que é uma terapia para você, mas é também para as pessoas com quem você se envolve nessas apresentações, não?
Sem dúvidas. Uma das músicas que eu escrevi e gravei se chama “Estrada de fé”. Eu fiz essa música voltando de uma viagem de Curitiba depois de uma consulta para o meu tratamento. A notícia não foi muito boa, mas o dia estava tão bonito, e o passeio de volta para casa estava tão bom que eu resolvi escrever. Aquilo me inspirou, uma comparação entre a vida e uma viagem de moto. Eu tentei traduzir como eu vejo a nossa vida nessa música, e também levar essa mensagem positiva para as outras pessoas, mesmo em momentos muito difíceis.
Quando eu comecei o tratamento eu pensava muito sobre a questão da autoestima da mulher. Perde o cabelo, perde a sobrancelha, perde os cílios. Eu tentei sempre levar isso da melhor forma possível. Para cantar, eu procurava sempre turbantes bonitos e confortáveis, mas não achava modelos que ficassem bons. A partir disso, eu e uma amiga tivemos a ideia de tentar produzir turbantes que elevassem as mulheres, e isso virou também um projeto para divulgar informações sobre bem-estar, direitos de pessoas em tratamento oncológico.
Acaba se tornando também uma militância em prol das pessoas que passam pela mesma experiência que você.
Se eu estou passando por isso, é por alguma razão. Então, vamos fazer valer a pena.