Com a palavra, a Defensoria: entrevista com a defensora pública Camille Vieira da Costa 26/04/2024 - 10:01

Para velar o sono da pequena Beatriz, a mãe Camille Vieira da Costa se afastou temporariamente do trabalho na Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR). Coordenadora do Núcleo Cível e Fazenda Pública, ela está de licença-maternidade até junho, mas recebeu a equipe da Assessoria de Comunicação da DPE-PR para falar sobre seus mais de 10 anos como defensora pública no Paraná. Seu momento de vida é propício para falar sobre a atuação na garantia de direitos, já que profissional e academicamente buscou pautar a relação entre os direitos das crianças e o papel da mulher no cuidado com os(as) filhos(as).

A paulistana trouxe a experiência de atuar como advogada popular na maior cidade da América Latina e defensora pública no Espírito Santo para o grupo de aprovados(as) no 1º concurso da DPE-PR. Camille contribuiu ativamente com a criação e o crescimento do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da instituição, e representou a Defensoria Pública em momentos relevantes da história recente do Paraná, como as ocupações estudantis, em 2016.

Camille é a entrevistada deste mês da série “Com a Palavra, a Defensoria”.

Fotos: Camille e sua filha Beatriz (ASCOM/DPE-PR).
Fotos: Camille e sua filha Beatriz (ASCOM/DPE-PR).

 

Por que você escolheu o Direito?

Eu escolhi Direito muito nova. Decidi que eu queria atuar na área em razão  de algumas atividades da escola que os pais dos colegas vão e apresentam as suas profissões. Um pai estava contando da experiência na advocacia criminal. Ele me falou sobre a advocacia e eu perguntei: e se essa pessoa é culpada? Ele falou:  todo mundo tem direito a defesa. Eu pensei na hora: quero ser advogada. O mais curioso é que eu nunca atuei na área Criminal, mas foi isso que me levou a escolher o Direito. Nunca tive um perfil muito formal e nunca fui uma pessoa dessas que seguem estereótipos do Direito. Depois, eu cursei Direito em São Paulo em uma universidade privada, fiz cursos de extensão em Direitos Humanos vinculados a outras universidades e organizações da sociedade civil. Ali, eu me achei, né? Comecei a estudar para concurso e a atuar como advogada popular de movimentos de moradia lá em São Paulo.

Você é de São Paulo mesmo, capital?

Sim. Os movimentos faziam ocupações na região metropolitana de São Paulo e precisavam de desses advogados populares que acompanhassem para que essas ocupações acontecessem de forma não violadora de direitos. Foi quando comecei a me encantar mais ainda por essas questões. Antes de ser defensora no Paraná, eu fui defensora no Espírito Santo. 

Ter passado grande parte da vida na região do bairro da Liberdade, em São Paulo, te influenciou de alguma forma?

Sim. Eu sempre estava muito próxima do que estava acontecendo nas ruas, entre grupos vulneráveis. Sempre fui muito sensível a isso. Eu estudei num colégio católico e também ali me envolvia com as pastorais da Juventude Estudantil, que faziam visitas a esses abrigos de crianças e de idosos. Eu tive uma formação bem humanista. 

Mas e como foi a Camile na infância?

Eu tive uma infância muito boa. Eu cresci numa espécie de vila militar. Meu pai era militar. Era um prédio, mas havia muitas crianças e muita liberdade.

Como foi ser filha de militar?

Meu pai não é tão rígido, como é o estereótipo militar no imaginário das pessoas. Hoje, às vezes, eu brinco com ele e ele olha pra mim: você acha que você é mesmo uma pessoa que teve uma infância opressora? Damos risada. Nós temos muitas divergências políticas, mas ele sempre me incentivou muito. Algumas escolhas que fiz na minha vida tomaram um caminho diferente da visão política que ele tinha. Por exemplo, me aproximei, com meus 18 ou 20 anos de idade, de um coletivo chamado Consulta Popular. Tive experiências muito muito boas com eles. Fui a  alguns assentamentos, também na escola da MST lá em São Paulo, que fica em Guararema, um lugar incrível. Foi muito marcante. Meu pai foi totalmente contra. Eu fui e foi muito bom. São coisas que foram muito importantes para a minha formação.

Essa formação faz a diferença no seu trabalho com a população?

Eu acho que sim. Tem momentos que você está fazendo um atendimento e, às vezes, pode se desencantar porque é muito trabalho, muita coisa. Quando você tem uma formação como a minha, consegue separar. Eu posso ficar pontualmente chateada com algo que aconteceu ou frustrada com alguma situação ali do trabalho, consigo ver além disso.

As pessoas veem você como uma pessoa calma, tranquila. Isso é fato ou você fica também irritada e consegue disfarçar bem? 

Eu fico irritada. Por exemplo, eu tenho muita simpatia pelo movimento da população em situação de rua, que eu trabalhei bastante aqui na cidade de Curitiba. Mas é claro que, às vezes, uma pessoa em situação de rua está extremamente nervosa e pode ser mal educada. Eu não vou julgá-la. Vou olhar e continuar o trabalho. Eu gosto muito do que faço e sou uma profissional muito feliz. É a minha profissão mesmo. É o lugar onde eu quero estar.

O que você trouxe para a Defensoria da experiência no convívio com os movimentos sociais?

Eu aprendi a ouvir com eles. 

Isso diz muito sobre o trabalho da Defensoria. Todo dia tem uma história na qual é a história mais importante do momento daquela pessoa… 

É importante ter em mente que nem sempre dá para fazer um trabalho personalizado, mas é preciso parar e ouvir, sem banalizar aquela história. É um exercício. É preciso ter empatia sempre. 

Como foi a trajetória dentro da Defensoria?

Eu comecei na capital porque eu sou do primeiro concurso da Defensoria e passei bem colocada. Comecei na área de Família, mas quis buscar outros desafios dentro da Defensoria e fui pro Cível e Fazenda Pública, porque minha praia é Direitos Humanos. As violações de Direitos Humanos acontecem em diversos âmbitos, mas acredito que ela se resolve na área Cível e Fazenda Pública. Eu fiquei alguns anos na Família e depois fui pro Cível. Quando eu entrei, ainda não existiam os núcleos especializados. Então, foram criados grupos de trabalho e eu coordenei o grupo de trabalho de Defesa dos Direitos Humanos, eu coordenei esse grupo de trabalho. 

Hoje é o NUCIDH (Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da DPE-PR). Foi uma experiência incrível que marcou minha vida como um trabalho de assistência jurídica dos estudantes que ocuparam dezenas de colégios estaduais em manifestação contra a medida provisória do governo federal que reformava o ensino médio, entre 2015 e 2016. Fizemos uma ponte muito importante de diálogo entre os manifestantes e o governo estadual no Paraná naquela época. Também trabalhei muito com a população em situação de rua e essa atuação nos deu um prêmio da Fundação Ford. 

E como foi estudar a perspectiva das mulheres sobre o direito à creche?

Eu tinha proximidade com uma professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná), que estuda gênero em questões de Família. Achei que foi bem bacana. Quem sabe eu faça um doutorado mais para frente quando os meus filhos crescerem um pouco. É mais difícil estudar com criança. Eu estava estudando e o meu companheiro também. Ele estuda migrantes. Ele ia fazer um doutorado sanduíche na França e eu pensei: “Poxa, eu também quero!”. A França é tão forte na questão de gênero. Fui atrás e consegui. Escrevi para um laboratório de estudo de gênero, da Paris 8, e eles me aceitaram. Eu fiquei lá quatro meses.

E pretende avançar em relação ao tema?

Eu sempre tenho muita vontade de fazer um novo estudo. Desde a minha defesa da minha dissertação até agora, tem se ampliado muito a discussão sobre o cuidado, sobre essas políticas do cuidado. A gente fala sobre as famílias, mas infelizmente a desigualdade entre homens e mulheres é muito grande e a sobrecarga é materna. Eu mesmo, assim, uma mãe militante, tendo um parceiro progressista, também tenho sobrecarga. No entanto, é um tema que tem avançado muito. Por isso, acho que posso desenvolver alguma pesquisa para poder demandar políticas públicas. 

As mulheres são, na sua opinião, as primeiras titulares do direito à creche?

A gente olha para criança, que evidentemente tem o direito, mas é também um direito da mulher. E é importante fazer o paralelo. Eu estou de licença-maternidade, mas é um direito da minha filha. É para ela essa licença. É um direito muito mais dela. Estou aqui me dedicando a ela. Mas é claro que, como sou mulher, se eu não tenho isso, a minha vida fica muito mais complicada.

E há uma realidade no Brasil, onde muitas mulheres estão no trabalho informal e, para sustentar suas famílias, acabam sendo obrigadas a trabalhar porque não podem ter uma licença-maternidade remunerada…

Eu sou privilegiada. Mas é preciso olhar para as demais mulheres. A conta não fecha. Nem no trabalho formal. O aleitamento materno tem que ser até os seis meses, só que a maior parte das mulheres no trabalho formal, por exemplo, tem só quatro meses de licença. Imagine no informal.

E como está sendo este momento, de licença-maternidade, para você?

Eu acho que isso é importante, muito mesmo. É um privilégio poder ter seis meses e poder emendar as férias e ainda não ter medo de quando eu voltar perder o meu emprego. Claro, eu sou muito ativa. Então, acabo ficando meio ligada no que está acontecendo também no trabalho nesse período, mas é um privilégio. É assim que me sinto. Acho que todo mundo deveria ter essa tranquilidade em benefício das crianças mesmo. E não só com a licença-maternidade, considero também muito importante que a gente pense, por exemplo, na licença-parental. É uma forma de permitir que o homem também possa ficar de licença, além de ser um mecanismo para buscarmos mais igualdade entre homens e mulheres.

Quais são seus planos dentro da Defensoria? 

Eu quero sempre poder contribuir. Mas não pretendo mudar de área.

Você falou do seu companheiro. Vocês estão juntos há muito tempo? 

A gente vive em uma união estável. É a cara do Brasil. Vivemos juntos há seis anos.

Ele é da área do Direito?

Não, da Sociologia. Ele é pesquisador, professor e estuda sociologia das migrações.